Pequenas e grandes histórias da História e mensagens mais ou menos amenas sobre vidas, causas, culturas, quotidianos, pensamentos, experiências, mundo...
Wenceslau de Moraes, o português que se apaixonou pelo Japão e que conhecemos há dias (aqui), dedicou, na sua obra Relance da Alma Japonesa, algumas páginas às geisha (gueixas), bem como a uma outra classe de mulheres que não devem ser confundidas com aquelas.
Tenha-se em atenção que Wenceslau escreveu este texto há cerca de um século, retratando a realidade tal como a viveu e sentiu. Do mesmo modo como fez, cerca de vinte anos depois dele, o também português Ferreira de Castro, que passou - ainda que episodicamente - pelo Japão e que aí abordou este mesmo tema das geisha - ver aqui.
..........
"Eu
vou falar de duas classes de mulheres japonesas, as gueixas (geisha) e
as … outras, estas bem mais abaixo do que aquelas na escala social e bem mais
pobres do que elas.
Mas o que são as gueixas?
Na Europa tem-se uma ideia muito
vaga e imperfeita sobre elas, por não haver por lá uma profissão feminina que à
das gueixas se compare.
As gueixas não são, propriamente, seres votados a uma
existência viciosa, de depravação.
São em geral filhas de lares de miséria
extrema que receberam do destino o privilégio de terem nascido gentis, bonitas,
cativantes.
Qualquer individuo, daqueles que se dão ao trabalho de cultivar, em
seu próprio proveito, estas pobres flores humanas, adquire-as, ainda crianças,
por adopção ou outro meio.
As gueixas começam então a receber, pouco a pouco,
lentamente, uma educação particularíssima, complicadíssima e em parte
delicadíssima; aprendem a tocar na perfeição pelo menos um instrumento indígena,
aprendem a cantar, aprendem a dançar, aprendem a vestir-se ricamente, de sedas
magnificas.
Aprendem também a ser agradáveis aos homens, quando convivas em banquetes,
nas chaya (casas de chá), onde serão chamadas, pagas a tanto por
cada hora, servindo então os mesmos convivas (homens, porque as damas não
frequentam as chaya), enchendo-lhes de saké (o vinho indígena)
as pequenas taças de porcelana, e finalmente tornando aprazível o tempo que
decorre, mercê do seu tagarelar gracioso, dos seus gestos - todos arte e
gentileza - e das prendas que exibem - música, dança, canto - tudo coroado pelo
esplendor da sua beleza.
Nada mais, e nada menos.
Descer ou subir a intimidades
mais flagrantes é-lhes interdito pelos regulamentos da polícia e outras
medidas.
No Japão, em todas as classes sociais, ainda as mais distintas, quando
se oferece um jantar a amigos, na chaya, é da praxe mandar chamar as gueixas,
que são, incontestavelmente, a mais cativante presença num festim, sem nada que
venha chocar vistas investigadoras do estranho, por exemplo do europeu, que
tome parte na função.
Pelo contrário: os europeus que hajam assistido a alguns
destes banquetes guardam uma impressão de enlevo que fica para sempre.
Quanto
à moralidade das gueixas, que a polícia protege, que poderei dizer aqui? A
vigilância da polícia não pode ser absoluta e infalível.
Mulheres formosas,
dotadas de mil atractivos, em frequente convivência com os fregueses habituais
da chaya, cortejadas por eles e cortejando-os, alminhas pervertidas pela
longa educação a que são submetidas, as gueixas – terror das famílias, cujos
filhos acaso se perderão algum dia por uma delas até ao ponto de querê-la por
esposa - não devem certamente ser tomadas como modelos de castidade e de
candura... Estão mesmo muito longe disto.
Uma ou outra
casará talvez, será feliz talvez. Mas uma grande maioria, privada para sempre do
amparo e dos confortos de um lar amigo, passando todas as noites em festas,
obrigadas por condescendência a fartas libações de saké, espera-as
evidentemente um fim prematuro, triste, esmagadas pela fadiga e por doença.
O
outro grupo de moças - das quais já fiz menção, bem mais abaixo do que as geisha
na escala social - procede da mesma origem, da miséria implacável, que leva a
todos os desmandos e arrasta as suas vítimas até aos luxuosos casarões das
grandes cidades, onde os seus encantos naturais têm procura.
Não é geralmente o
vício que as empurra; elas são umas simples meninas, de dezasseis anos, de
vinte anos quando muito, que viveram até então a vida que todas as moças do seu
meio vão levando. Mas morreu o pai, ou ficou entrevado; a mãe, atarefada, sem
recursos, já não tem mais que vender para comprar arroz para as crianças.
É a
catástrofe. Então, ela, a pobre rapariga, por uma inabalável intuição do dever
filial como ele se compreende no Japão, na China e em toda a Extrema-Ásia,
parte, lá vai, à aventura, sem mesmo ter a consolá-la o sentimento do próprio
sacrifício, quase indiferente, alheia de si própria, da sua individualidade,
pensando apenas nos auxílios que poderá enviar à família para minorar-lhe a
fome.
Demora-se na cidade dois anos, três anos, quatro anos, conforme.
Depois, regressa ao lar. Sim, regressa ao lar; pelo menos, assim julga que
suceda. Mas, num grande número de casos, é nalgum dos hospitais das grandes
cidades que terminam o seu fadário essas pobres meninas, apodrecidas em
doenças.
Se logram volver ao lar, ai, pobres moças! ... murchou-se-lhes
de todo e para sempre o frescor da mocidade; nunca poderão ser esposas e mães
sadias, embora, no seu meio, encontrem maridos complacentes…
Mais
umas rápidas considerações sobre as geisha.
Reconheça-se que estas moças exerceram
durante alguns anos, inconscientemente - qual de vós o julgaria? - missões de alta diplomacia na política mundial, quando o Japão, entrado apenas na nossa
civilização, não tivera ainda tempo de criar simpatias na Europa e na América pela bravura dos seus soldados e pelo estrondo dos seus canhões. [Nota da Torre - O Japão tinha vencido em 1905 uma guerra com a poderosa Rússia dos czares - recordar aqui]
Os turistas de raça branca, que vinham ao Japão, eram poucos então. Mas esses poucos, em
geral rapazes descuidados, com bastante dinheiro nas algibeiras e amigos de
prazeres excluídos dos lares honestos, iam procurar as geisha, às quais pediam um sorriso, uma carícia, que recebiam, e com mil vezes mais
graça e mais decência do que as que eles estavam acostumados a encontrar por
esse mundo fora.
Foram esses sorrisos e essas carícias, divulgados
discretamente em palestras, quando não em livros de viagens, que deram origem às primeiras correntes de simpatia dos países de raça branca pelo Japão, o que
era evidentemente bem melhor do que correntes de antipatia (...)."
Foi um dos momentos mais poderosos e marcantes da posse dos novos presidente e vice-presidente dos Estados Unidos da América: a jovem Amanda Gorman e o seu poema The Hill We Climb (A Colina Que Subimos).
Apresentando-se como uma menina negra magricela, descendente de escravos e criada por uma mãe solteira, partiu da triste e criminosa realidade legada pelo anterior ocupante da Casa Branca (onde podemos encontrar luz nesta sombra sem fim?) para compor um hino de esperança à América de amanhã, a América cujo destino se encerra nos corações e na vontade dos homens e das mulheres de bem que maioritariamente a povoam:
Excertos do que ela disse:
uma nação que não está destruída, mas simplesmente inacabada (...);
estamo-nos esforçando para construir um país comprometido com todas as culturas, cores, personagens e condições do ser humano (...);
e então levantamos os nossos olhares não para o que está entre nós, mas para o que está diante de nós;
não porque nunca mais conheceremos a derrota, mas porque nunca mais semearemos a divisão (...);
a vitória não estará na lâmina, mas em todas as pontes que fizermos;
essa é a promessa da clareira, a montanha que escalamos (...)
não marcharemos de volta para o que era, mas caminharemos para o que será, um país ferido mas inteiro e benevolente, forte e livre;
não seremos desviados ou detidos pela intimidação, porque sabemos que a nossa inação e inércia serão a herança da próxima geração; os nossos erros tornar-se-ão o seu fardo;
(...) uma coisa é certa: se fundirmos misericórdia com força e força com direito, então o amor tornar-se-á o nosso legado e mudará o direito de nascença dos nossos filhos;
(...) então iremos deixar para trás um país melhor do que aquele em que fomos deixados (...);
Oiça a comunicação integral no vídeo abaixo (legendado)
Wenceslau de Moraes (Lisboa, Portugal, 1854 - Tokushima, Japão, 1929) foi um português que viveu longos anos no Japão, país pelo qual se apaixonou e sobre o qual escreveu centenas de páginas de memórias e impressões.
É do seu livro Relance da Alma Japonesa, de 1925, que transcrevemos (com adaptações de pormenor e actualização de ortografia) o texto que se segue.
"Penetremos
numa casa japonesa deixando à porta os sapatos. O sobrado, que se eleva cerca
de meio metro sobre o solo, é invariavelmente revestido de esteiras, pequenas
esteiras, ajustadas umas de encontro às outras, espessas e fofas.
Logo à
entrada, notam-se cuidados prodigiosos de limpeza. A casa do pobre é asseada; se não é casa de pobre, mas uma simples habitação de conforto
mediano, o viço das esteiras, que frequentemente se renovam, é de uma frescura
encantadora, é um deslumbramento.
O asseio é uma das qualidades mais salientes do povo japonês. Seguindo mais para dentro, vamos encontrar por toda a parte,
em tudo, o mesmo asseio que já observáramos à entrada. Pode dizer-se que, na
habitação japonesa, o principal luxo, muitas vezes o único, é a limpeza; mas
esta tão requintada, que embriaga!
Mobília, no sentido que lhe damos, nós da
Europa, quase não existe, ou não existe mesmo; não há cadeiras, não há sofás, não há leitos;
as colchas, com que se preparam à noite as camas, estão guardadas.
O altar dos
mortos, onde cada membro desaparecido da família tem o seu lugar marcado e a
sua chávena com chá e a sua taça com arroz, encontra-se longe das vistas, em
algum sítio ermo, próprio para a meditação e para a prece. Falta a
quinquilharia vária, que serve, nas nossas casas do Ocidente, para ornamentar
os aposentos.
Pelo chão vemos algumas almofadas ou coxins forrados de seda ou
de algodão, sobre os quais as pessoas ajoelham; e ainda o braseiro, a caixa com
tabaco, um cachimbo minúsculo e os miúdos utensílios em que se vai servir o chá
que nos oferecem.
Num pequeno espaço à parte, que parece cavado na parede como
um nicho, suspende-se geralmente um quimono; e, numa jarra de bronze ou de
porcelana, verdejam folhagens ou espigam florescências, dispostas segundo as
regras da arte maravilhosa com que neste país se compõem ramalhetes.
As paredes
são cobertas de estuques, alguns de belo efeito, por exemplo quando a mica
entrou no seu preparo. Largas peças rectangulares, feitas de folhas de papel
sobrepostas, ornamentadas de desenhos nas suas duas faces e emolduradas em
caixilhos lacados, descem do tecto ao chão, podendo deslizar em ranhuras; de
sorte que, com um leve esforço, elas aproximam-se ou afastam-se umas das outras,
isolando ou escancarando os aposentos.
Dai agora ao ambiente um meio-tom de luz,
cor de pérola, devida à semi-transparência do papel que faz o efeito de vidraça
– luz de paz, luz de sonho, luz profundamente impressionante. E tendes assim,
em breve descrição, o que seja uma casa japonesa.
Conhecida
a casa, povoemo-la com a família. Uma grande família, em geral. Nomeemos, em
primeiro lugar, o dono da casa e a sua esposa. Juntai ao casal o bando das crianças,
muitas em regra – sabeis sem dúvida a fama de prolífera de que goza a família
japonesa.
Juntai agora os velhos; rara será a casa onde não se encontrem velhos
- entre pai, mãe, avô, avó, etc. —, especialmente se o dono da casa é filho
primogénito, situação que lhe confere honras notáveis, mas também grandes
encargos a cumprir.
Se a família é abastada, adicionai as criadinhas, acaso
outros serviçais. Toda esta gente gira, rodopia de um lado para o outro, no exíguo
espaço do acanhado abrigo; mas sem atritos, sem dificuldades, numa admirável
compreensão das suas funções, lembrando formigas em labuta; ao mesmo tempo, sem
ralhos, sem altercações, quase em silêncio; nem mesmo se ouvem gargalhadas, a
gente japonesa não sabe rir, sabe sorrir, e a sorrir a vemos quase sempre.
Quanto
às crianças, se são de tenra idade, passam os dias às costas das mães, ou
mamando, regalo que só termina quando rejeitam o seio, aos dois ou três anos de
idade, ou ainda mais tarde; ou transitam das costas das mães para as cestas das
irmãs mais crescidas, ou para as costas das criadinhas.
Desde os cinco ou seis
anos, as crianças fazem o que querem, passam a vida na rua, em bandos
galhofeiros, isto sobretudo entre as famílias mais humildes. Aos oito anos, as
crianças começam a frequentar a escola, sem abandonarem a rua nas horas livres.
Quanto
aos velhos, brincam também - duas vezes somos crianças - ou dão-se a ocupações
do seu agrado, arrancando as ervas ruins que nascem junto à porta, ou varrendo
a rua, ou em qualquer coisa deste género; inteiramente desinteressados de
qualquer parte activa ou dirigente no seio da família, devido à transferência de
deveres e de direitos que fizeram ao filho primogénito quando se julgaram inúteis.
O dono da casa é o rei, a quem todos obedecem, sem sacrifício,
porque, pelos costumes, é um prazer obedecer-lhe; rei pouco incómodo, todavia,
rei-patriarca, que manda e não admite escusas para a falta de cumprimento das
ordens que ditou, mas complacente e sereno, cuidando do bem de todos, desde a
esposa, que ele protege e encaminha na vida como se protege e encaminha na vida
uma criança, até às verdadeiras crianças, que são seus filhos, até às criadinhas,
se as tem, as quais, pelo facto de viverem debaixo do mesmo tecto, gozam de
mais direitos e atenções do que as nossas criadas, nas casas europeias.
Para a
mentalidade japonesa, o culto da família é tudo, a razão de ser da existência;
não o culto da família viva, mas o culto da família morta, o culto dos avós
desaparecidos.
Estes avós, pelas suas próprias virtudes durante a existência e
pelas homenagens que os vivos lhes tributam, alcançam a bem-aventurança; e os seus espíritos agradecidos pagam
em afectuosa protecção os cuidados rituais que se lhes votaram, guiando os
vivos nos seus passos sobre a terra, aplanando-lhes dificuldades,
encaminhando-os também para a bem-aventurança esperada.
Vive-se, pois, pode
dizer-se, para morrer; e morre-se para viver.
O lar é o templo principal deste
culto, e local escolhido para a execução dos ritos principais, praticados junto
do altar dos mortos, a manifestação mais visível e palpável da inteira doutrina
cultual.
Sendo a casa o templo, a família, naturalmente, constitui o grupo dos
sacerdotes oficiantes; destacando-se de entre todos, também naturalmente, o
dono da casa como o principal dos sacerdotes, o patriarca, o directo
intermediário entre os membros mortos e os membros vivos da família.
Por isto,
ele se coloca em evidência, como o ser mandante, e exige que a sua vontade se
respeite. Por isto, ele é o rei na sua casa.
Um templo, a casa de família. E
certamente um templo de virtude, de honestidade, de pundonor, que não
deslustre, enfim, a sagrada missão a que é votado; as raras faltas que se
cometem são punidas com rigor extremo.
Quereis exemplos de honestidade? Há milhões
para contar, na memória do povo. Um exemplo recente, pois conta apenas alguns
anos, ocorreu em Nagano, capital do distrito do mesmo nome.
Certo homem político
proferiu uma covarde mentira. Então, sua esposa vestiu-se toda de branco, como
se vestem aqueles que vão entrar no país dos espíritos; purificou os lábios,
conforme os ritos sagrados prescrevem, e, indo buscar um velho sabre, relíquia
da família, suicidou-se.
Em carta que deixou, lamentava não ter mais vidas para
dar, em expiação da vergonha sofrida e do crime de seu marido.
Até hoje, o povo
vai orar junto do seu túmulo, que enfeita com flores; e implora aos deuses que em
suas filhas palpitem corações da têmpera do coração daquela infeliz esposa.
Fica-se
agora melhor compreendendo a importância imensa da família na vida japonesa.
O
indivíduo é nada, a família é tudo. A família é, e foi sempre, a unidade de
referência, não o indivíduo. Nos velhos tempos, era sobre a família que pesavam
todas as responsabilidades, não sobre um dos seus membros. Assim, se um
individuo cometia um crime, toda a família, solidária perante as justiças do país,
era punida.
Se a casinha é pobre, e pobres são as casinhas quase todas - se os
recursos monetários se avaliam pelo salário de um carpinteiro, ou de um
estucador, ou de um barbeiro, ou coisa parecida -
a vida complica-se.
Dispensa-se então a criadinha. A esposa do dono da casa é
tudo, ou quase tudo. É ela a cozinheira, quem cuida da limpeza, quem lava a
roupa, quem cose os quimonos, quem banha os filhos, quem se dá a mil outros
misteres. Mas tudo se faz de cara alegre, entre sorrisos, e com uma destreza de movimentos, e com uma arte maravilhosa de mãos hábeis, que é coisa de pasmar!"
Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura.
- És tu, Ernesto, meu amor?
Não era.
Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia.
2 -Carreirismo
Após ter surripiado por três vezes a compota da despensa, seu pai admoestou-o.
Depois de ter roubado a caixa do senhor Esteves da mercearia da esquina, seu pai pô-lo na rua.
Voltou passados vinte e dois anos, com chófer fardado.
Era Director Geral das Polícias.
Seu pai teve o enfarte.
3 - A Família
Vamos à pesca
disse o pai
para os três filhos
vamos à pesca do esturjão
nada melhor do que pescar
para conservar
a união familiar
a mãe deu-lhe razão
e preparou
sem mais detença
sopa de couves com feijão
para ir também
à pescaria do esturjão
e a mãe e o pai
e os três filhos
foram à pesca
do esturjão
todos atentos
satisfeitíssimos
que bom pescar
o esturjão!
que bom comer
o belo farnel
sopa de couves com feijão!
e foi então
que apanharam
um magnífico esturjão
que logo quiseram
ali fritar
mas enganaram-se na fritada
e zás fritaram o velho pai
apetitoso
muito melhor
mais saboroso
do que o esturjão
vamos para casa
disse o esturjão.
4 - Rifão Quotidiano
(A Nêspera)
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás, comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece.
A Nêspera
(por Mário Viegas)
Mário-Henrique Leiria, que nasceu em Lisboa (2 de Janeiro de 1923) e faleceu em Cascais (9 de Janeiro de 1980) foi um escritor surrealista português. Saiba mais sobre ele - aqui.
Valentina Lisitsa é uma excelente pianista clássica (ucraniana, tal como Anna Fedorova, com quem estivemos aqui).
A peça que ela executa de forma soberba no vídeo abaixo, com a Orquestra da BBC, é o famoso Concerto de Varsóvia, composto para o filme Dangerous Moonlight pelo inglês Richard Addinsell (1904-1977).
A condução da orquestra é do maestro Gavin Sutherland.
Valentina Lisitsa nasceu em 1973 na cidade de Kiev (Ucrânia). Vive actualmente nos Estados Unidos da América (Carolina do Norte). Saiba mais sobre ela aqui.
Sugerimos também uma visita ao site desta pianista excepcional - aqui.
Há sessenta anos, no dia 4 de Junho de 1960, a escritora brasileira Rachel de Queiroz (1910-2003) deixou na revista O Cruzeiro o seguinte testemunho ajuramentado sobre o tema em apreço - algo de insólito que ela teve oportunidade de observar no seu Ceará natal (respeita-se a ortografia original):
"Hoje não vou fazer uma crônica como as de todo dia; hoje, quero apenas dar um
depoimento. Deixem-me afirmar, de saída, que nestas linhas abaixo não digo
uma letra que não seja estritamente a verdade, só a verdade, nada mais que
a verdade, como um depoimento em Juízo, sob juramento.
Escrevo
do sertão, onde vim passar férias. E o fato que vou contar aconteceu ontem,
dia 13 de maio de 1960, na minha fazenda “Não me Deixes”,
Distrito de Daniel de Queiroz, município de Quixadá, Ceará.
*****
Seriam
seis e meia da tarde; aqui o crepúsculo é cedo e rápido, e já escurecera de
todo. A Lua iria nascer bem mais tarde e o céu estava cheio de estrêlas.
Minha
tia Arcelina viera da sua fazenda Guanabara fazer-me uma visita, e nós
conversávamos as duas na sala de jantar, quando um grito de meu marido nos
chamou ao alpendre, onde êle estava com alguns homens da fazenda. Todos
olhavam o céu.
Em
direção norte, quase noroeste, a umas duas braças acima da linha do
horizonte, uma luz brilhava como uma estrêla grande, talvez um pouco menos
clara do que Vésper, e a sua luz era alaranjada. Era essa luz cercada por
uma espécie de halo luminoso e nevoento, como uma nuvem transparente
iluminada, de forma circular, do tamanho daquela “lagoa” que às vêzes cerca a Lua.
*****
E
aquela luz com o seu halo se deslocava horizontalmente, em sentido do
leste, ora em incrível velocidade, ora mais devagar. Às vêzes mesmo se
detinha; também o seu clarão variava, ora forte e alongado como essas
estrêlas de Natal das gravuras, ora quase sumia, ficando reduzido apenas à
grande bola fôsca, nevoenta.
E essas variações de tamanho e intensidade
luminosa se sucediam de acôrdo com os movimentos do objeto na sua
caprichosa aproximação. Mas nunca deixou a horizontal. Dêsse modo andou êle
pelo céu durante uns dez minutos ou mais. Tinha percorrido um bom quarto do
círculo total do horizonte, sempre na direção do nascente; e já estava
francamente a nordeste, quando embicou para a frente, para o norte, e
bruscamente sumiu, - assim como quem apaga um comutador elétrico.
*****
Esperamos
um pouco para ver se voltava. Não voltou. Corremos, então, ao relógio: eram
seis e três quartos, ou seja, 18.45. Pelo menos umas vinte pessoas estavam
conosco, no terreiro da fazenda, e tôdas viram o que nós vimos.
Trabalhadores que chegaram para o serviço, hoje pela manhã, e que moram a
alguns quilômetros de distância, nos vêm contar a mesma coisa.
Afirmam
alguns dêles que já viram êsse mesmo corpo luminoso a brilhar no céu,
outras vêzes, - nos falam em quatro vêzes. Dizem que nessas aparições a luz
se aproximou muito mais, ficando muito maior. Dizem, também, que essa luz
aparece em janeiro e em maio - talvez porque nesses meses estão mais
atentos ao céu, esperando as chuvas de comêço e de fim de inverno.
*****
Que
coisa seria essa que ontem andava pelo céu, com a sua luz e o seu halo?
Acho que, para a definir, o melhor é recorrer à expressão já cautelosamente
oficializada: objeto voador não identificado. Mas não afirmo.
Porém, isso êle era. Não era uma estrêla cadente, não era avião, não, de
maneira nenhuma, coisa da Natureza - com aquela deliberação no vôo, com
aquêles caprichos de parada e corrida, com aquêle jeito de ficar peneirando
no céu, como uma ave. Não, dentro daquilo, animando aquilo, havia uma coisa
viva, consciente.
E não
fazia ruído nenhum.
Poderia
recolher os testemunhos dos vizinhos que estão acorrendo a contar o que
assistiram: o mesmo que nós vimos aqui em casa. A bola enevoada feito uma
lua, e no meio dela uma luz forte, uma espécie de núcleo, que aumentava e
diminuía, correndo sempre na horizontal, e do poente para o nascente.
*****
Muita
gente está assombrada. Um parente meu conta que precisou acalmar
enèrgicamente as mulheres que aos gritos de “Meu Jesus, misericórdia!” caíam de joelhos no chão, chorando. Sim, em
redor de muitas léguas daqui creio que se podem colhêr muitíssimos
testemunhos. Centenas, talvez.
Mas
faço questão de não afirmar nada por ouvir dizer.
Dou apenas o meu
testemunho.
Não é imaginação, não é nervoso, não são coisas do
chamado “temperamento artístico”.
Sou uma mulher calma, céptica, com lamentável
tendência para o materialismo e o lado positivo das coisas. Sempre me
queixo da minha falta de imaginação. Ah, tivesse eu imaginação, poderia
talvez ser realmente uma romancista.
Mas o caso de ontem não tem nada
comigo, nem com o meu temperamento, com minhas crenças e descrenças.