quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

No Japão Antigo - A Casa, a Família, os Antepassados (Wenceslau de Moraes)




Wenceslau de Moraes (Lisboa, Portugal, 1854 - Tokushima, Japão, 1929) foi um português que viveu longos anos no Japão, país pelo qual se apaixonou e sobre o qual escreveu centenas de páginas de memórias e impressões.
É do seu livro Relance da Alma Japonesa, de 1925, que transcrevemos (com adaptações de pormenor e actualização de ortografia) o texto que se segue.
Saiba mais sobre o autor aqui.

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 "Penetremos numa casa japonesa deixando à porta os sapatos. O sobrado, que se eleva cerca de meio metro sobre o solo, é invariavelmente revestido de esteiras, pequenas esteiras, ajustadas umas de encontro às outras, espessas e fofas.

Logo à entrada, notam-se cuidados prodigiosos de limpeza. A casa do pobre é asseada; se não é casa de pobre, mas uma simples habitação de conforto mediano, o viço das esteiras, que frequentemente se renovam, é de uma frescura encantadora, é um deslumbramento.

O asseio é uma das qualidades mais salientes do povo japonês. Seguindo mais para dentro, vamos encontrar por toda a parte, em tudo, o mesmo asseio que já observáramos à entrada. Pode dizer-se que, na habitação japonesa, o principal luxo, muitas vezes o único, é a limpeza; mas esta tão requintada, que embriaga!


Mobília, no sentido que lhe damos, nós da Europa, quase não existe, ou não existe mesmo; não há cadeiras, não há sofás, não há leitos; as colchas, com que se preparam à noite as camas, estão guardadas.

O altar dos mortos, onde cada membro desaparecido da família tem o seu lugar marcado e a sua chávena com chá e a sua taça com arroz, encontra-se longe das vistas, em algum sítio ermo, próprio para a meditação e para a prece. Falta a quinquilharia vária, que serve, nas nossas casas do Ocidente, para ornamentar os aposentos.

Pelo chão vemos algumas almofadas ou coxins forrados de seda ou de algodão, sobre os quais as pessoas ajoelham; e ainda o braseiro, a caixa com tabaco, um cachimbo minúsculo e os miúdos utensílios em que se vai servir o chá que nos oferecem.

Num pequeno espaço à parte, que parece cavado na parede como um nicho, suspende-se geralmente um quimono; e, numa jarra de bronze ou de porcelana, verdejam folhagens ou espigam florescências, dispostas segundo as regras da arte maravilhosa com que neste país se compõem ramalhetes.



As paredes são cobertas de estuques, alguns de belo efeito, por exemplo quando a mica entrou no seu preparo. Largas peças rectangulares, feitas de folhas de papel sobrepostas, ornamentadas de desenhos nas suas duas faces e emolduradas em caixilhos lacados, descem do tecto ao chão, podendo deslizar em ranhuras; de sorte que, com um leve esforço, elas aproximam-se ou afastam-se umas das outras, isolando ou escancarando os aposentos.

Dai agora ao ambiente um meio-tom de luz, cor de pérola, devida à semi-transparência do papel que faz o efeito de vidraça – luz de paz, luz de sonho, luz profundamente impressionante. E tendes assim, em breve descrição, o que seja uma casa japonesa.



Conhecida a casa, povoemo-la com a família. Uma grande família, em geral. Nomeemos, em primeiro lugar, o dono da casa e a sua esposa. Juntai ao casal o bando das crianças, muitas em regra – sabeis sem dúvida a fama de prolífera de que goza a família japonesa.

Juntai agora os velhos; rara será a casa onde não se encontrem velhos - entre pai, mãe, avô, avó, etc. —, especialmente se o dono da casa é filho primogénito, situação que lhe confere honras notáveis, mas também grandes encargos a cumprir.

Se a família é abastada, adicionai as criadinhas, acaso outros serviçais. Toda esta gente gira, rodopia de um lado para o outro, no exíguo espaço do acanhado abrigo; mas sem atritos, sem dificuldades, numa admirável compreensão das suas funções, lembrando formigas em labuta; ao mesmo tempo, sem ralhos, sem altercações, quase em silêncio; nem mesmo se ouvem gargalhadas, a gente japonesa não sabe rir, sabe sorrir, e a sorrir a vemos quase sempre.



Quanto às crianças, se são de tenra idade, passam os dias às costas das mães, ou mamando, regalo que só termina quando rejeitam o seio, aos dois ou três anos de idade, ou ainda mais tarde; ou transitam das costas das mães para as cestas das irmãs mais crescidas, ou para as costas das criadinhas.

Desde os cinco ou seis anos, as crianças fazem o que querem, passam a vida na rua, em bandos galhofeiros, isto sobretudo entre as famílias mais humildes. Aos oito anos, as crianças começam a frequentar a escola, sem abandonarem a rua nas horas livres.

Quanto aos velhos, brincam também - duas vezes somos crianças - ou dão-se a ocupações do seu agrado, arrancando as ervas ruins que nascem junto à porta, ou varrendo a rua, ou em qualquer coisa deste género; inteiramente desinteressados de qualquer parte activa ou dirigente no seio da família, devido à transferência de deveres e de direitos que fizeram ao filho primogénito quando se julgaram inúteis.



O dono da casa é o rei, a quem todos obedecem, sem sacrifício, porque, pelos costumes, é um prazer obedecer-lhe; rei pouco incómodo, todavia, rei-patriarca, que manda e não admite escusas para a falta de cumprimento das ordens que ditou, mas complacente e sereno, cuidando do bem de todos, desde a esposa, que ele protege e encaminha na vida como se protege e encaminha na vida uma criança, até às verdadeiras crianças, que são seus filhos, até às criadinhas, se as tem, as quais, pelo facto de viverem debaixo do mesmo tecto, gozam de mais direitos e atenções do que as nossas criadas, nas casas europeias.

Para a mentalidade japonesa, o culto da família é tudo, a razão de ser da existência; não o culto da família viva, mas o culto da família morta, o culto dos avós desaparecidos.

Estes avós, pelas suas próprias virtudes durante a existência e pelas homenagens que os vivos lhes tributam, alcançam a bem-aventurança; e os seus espíritos agradecidos pagam em afectuosa protecção os cuidados rituais que se lhes votaram, guiando os vivos nos seus passos sobre a terra, aplanando-lhes dificuldades, encaminhando-os também para a bem-aventurança esperada.

Vive-se, pois, pode dizer-se, para morrer; e morre-se para viver.



O lar é o templo principal deste culto, e local escolhido para a execução dos ritos principais, praticados junto do altar dos mortos, a manifestação mais visível e palpável da inteira doutrina cultual.

Sendo a casa o templo, a família, naturalmente, constitui o grupo dos sacerdotes oficiantes; destacando-se de entre todos, também naturalmente, o dono da casa como o principal dos sacerdotes, o patriarca, o directo intermediário entre os membros mortos e os membros vivos da família.

Por isto, ele se coloca em evidência, como o ser mandante, e exige que a sua vontade se respeite. Por isto, ele é o rei na sua casa.

Um templo, a casa de família. E certamente um templo de virtude, de honestidade, de pundonor, que não deslustre, enfim, a sagrada missão a que é votado; as raras faltas que se cometem são punidas com rigor extremo.

 



Quereis exemplos de honestidade? Há milhões para contar, na memória do povo. Um exemplo recente, pois conta apenas alguns anos, ocorreu em Nagano, capital do distrito do mesmo nome.

Certo homem político proferiu uma covarde mentira. Então, sua esposa vestiu-se toda de branco, como se vestem aqueles que vão entrar no país dos espíritos; purificou os lábios, conforme os ritos sagrados prescrevem, e, indo buscar um velho sabre, relíquia da família, suicidou-se.

Em carta que deixou, lamentava não ter mais vidas para dar, em expiação da vergonha sofrida e do crime de seu marido.

Até hoje, o povo vai orar junto do seu túmulo, que enfeita com flores; e implora aos deuses que em suas filhas palpitem corações da têmpera do coração daquela infeliz esposa.



Fica-se agora melhor compreendendo a importância imensa da família na vida japonesa.

O indivíduo é nada, a família é tudo. A família é, e foi sempre, a unidade de referência, não o indivíduo. Nos velhos tempos, era sobre a família que pesavam todas as responsabilidades, não sobre um dos seus membros. Assim, se um individuo cometia um crime, toda a família, solidária perante as justiças do país, era punida.

Se a casinha é pobre, e pobres são as casinhas quase todas - se os recursos monetários se avaliam pelo salário de um carpinteiro, ou de um estucador, ou de um barbeiro, ou coisa parecida - a vida complica-se.

Dispensa-se então a criadinha. A esposa do dono da casa é tudo, ou quase tudo. É ela a cozinheira, quem cuida da limpeza, quem lava a roupa, quem cose os quimonos, quem banha os filhos, quem se dá a mil outros misteres. Mas tudo se faz de cara alegre, entre sorrisos, e com uma destreza de movimentos, e com uma arte maravilhosa de mãos hábeis, que é coisa de pasmar!"



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