sábado, 30 de janeiro de 2021

No Japão Antigo - Gueixas e ... Outras (Wenceslau de Moraes)


Wenceslau de Moraes, o português que se apaixonou pelo Japão e que conhecemos há dias (aqui), dedicou, na sua obra Relance da Alma Japonesa, algumas páginas às geisha (gueixas), bem como a uma outra classe de mulheres que não devem ser confundidas com aquelas.

Tenha-se em atenção que Wenceslau escreveu este texto há cerca de um século, retratando a realidade tal como a viveu e sentiu. Do mesmo modo como fez, cerca de vinte anos depois dele, o também português Ferreira de Castro, que passou - ainda que episodicamente - pelo Japão e que aí abordou este mesmo tema das geisha - ver aqui.

..........  


"Eu vou falar de duas classes de mulheres japonesas, as gueixas (geisha) e as … outras, estas bem mais abaixo do que aquelas na escala social e bem mais pobres do que elas.

Mas o que são as gueixas?

Na Europa tem-se uma ideia muito vaga e imperfeita sobre elas, por não haver por lá uma profissão feminina que à das gueixas se compare.
As gueixas não são, propriamente, seres votados a uma existência viciosa, de depravação.
São em geral filhas de lares de miséria extrema que receberam do destino o privilégio de terem nascido gentis, bonitas, cativantes. 


Qualquer individuo, daqueles que se dão ao trabalho de cultivar, em seu próprio proveito, estas pobres flores humanas, adquire-as, ainda crianças, por adopção ou outro meio.

As gueixas começam então a receber, pouco a pouco, lentamente, uma educação particularíssima, complicadíssima e em parte delicadíssima; aprendem a tocar na perfeição pelo menos um instrumento indígena, aprendem a cantar, aprendem a dançar, aprendem a vestir-se ricamente, de sedas magnificas.

Aprendem também a ser agradáveis aos homens, quando convivas em banquetes, nas chaya (casas de chá), onde serão chamadas, pagas a tanto por cada hora, servindo então os mesmos convivas (homens, porque as damas não frequentam as chaya), enchendo-lhes de saké (o vinho indígena) as pequenas taças de porcelana, e finalmente tornando aprazível o tempo que decorre, mercê do seu tagarelar gracioso, dos seus gestos - todos arte e gentileza - e das prendas que exibem - música, dança, canto - tudo coroado pelo esplendor da sua beleza.

Nada mais, e nada menos.



Descer ou subir a intimidades mais flagrantes é-lhes interdito pelos regulamentos da polícia e outras medidas.

No Japão, em todas as classes sociais, ainda as mais distintas, quando se oferece um jantar a amigos, na chaya, é da praxe mandar chamar as gueixas, que são, incontestavelmente, a mais cativante presença num festim, sem nada que venha chocar vistas investigadoras do estranho, por exemplo do europeu, que tome parte na função.
Pelo contrário: os europeus que hajam assistido a alguns destes banquetes guardam uma impressão de enlevo que fica para sempre.

Quanto à moralidade das gueixas, que a polícia protege, que poderei dizer aqui? A vigilância da polícia não pode ser absoluta e infalível.


Mulheres formosas, dotadas de mil atractivos, em frequente convivência com os fregueses habituais da chaya, cortejadas por eles e cortejando-os, alminhas pervertidas pela longa educação a que são submetidas, as gueixas – terror das famílias, cujos filhos acaso se perderão algum dia por uma delas até ao ponto de querê-la por esposa - não devem certamente ser tomadas como modelos de castidade e de candura... Estão mesmo muito longe disto.

Uma ou outra casará talvez, será feliz talvez. Mas uma grande maioria, privada para sempre do amparo e dos confortos de um lar amigo, passando todas as noites em festas, obrigadas por condescendência a fartas libações de saké, espera-as evidentemente um fim prematuro, triste, esmagadas pela fadiga e por doença.


O outro grupo de moças - das quais já fiz menção, bem mais abaixo do que as geisha na escala social - procede da mesma origem, da miséria implacável, que leva a todos os desmandos e arrasta as suas vítimas até aos luxuosos casarões das grandes cidades, onde os seus encantos naturais têm procura.

Não é geralmente o vício que as empurra; elas são umas simples meninas, de dezasseis anos, de vinte anos quando muito, que viveram até então a vida que todas as moças do seu meio vão levando. Mas morreu o pai, ou ficou entrevado; a mãe, atarefada, sem recursos, já não tem mais que vender para comprar arroz para as crianças.


É a catástrofe. Então, ela, a pobre rapariga, por uma inabalável intuição do dever filial como ele se compreende no Japão, na China e em toda a Extrema-Ásia, parte, lá vai, à aventura, sem mesmo ter a consolá-la o sentimento do próprio sacrifício, quase indiferente, alheia de si própria, da sua individualidade, pensando apenas nos auxílios que poderá enviar à família para minorar-lhe a fome.

Demora-se na cidade dois anos, três anos, quatro anos, conforme. Depois, regressa ao lar. Sim, regressa ao lar; pelo menos, assim julga que suceda. Mas, num grande número de casos, é nalgum dos hospitais das grandes cidades que terminam o seu fadário essas pobres meninas, apodrecidas em doenças.

Se logram volver ao lar, ai, pobres moças! ... murchou-se-lhes de todo e para sempre o frescor da mocidade; nunca poderão ser esposas e mães sadias, embora, no seu meio, encontrem maridos complacentes…



Mais umas rápidas considerações sobre as geisha.
Reconheça-se que estas moças exerceram durante alguns anos, inconscientemente - qual de vós o julgaria? - missões de alta diplomacia na política mundial, quando o Japão, entrado apenas na nossa civilização, não tivera ainda tempo de criar simpatias na Europa e na América pela bravura dos seus soldados e pelo estrondo dos seus canhões. [Nota da Torre - O Japão tinha vencido em 1905 uma guerra com a poderosa Rússia dos czares - recordar aqui]

Os turistas de raça branca, que vinham ao Japão, eram poucos então. Mas esses poucos, em geral rapazes descuidados, com bastante dinheiro nas algibeiras e amigos de prazeres excluídos dos lares honestos, iam procurar as geisha, às quais pediam um sorriso, uma carícia, que recebiam, e com mil vezes mais graça e mais decência do que as que eles estavam acostumados a encontrar  por esse mundo fora.

Foram esses sorrisos e essas carícias, divulgados discretamente em palestras, quando não em livros de viagens, que deram origem às primeiras correntes de simpatia dos países de raça branca pelo Japão, o que era evidentemente bem melhor do que correntes de antipatia (...)."



Música tocada por gueixas:

Dança Tradicional - Maiko

Sem comentários: