Wenceslau de Moraes, o português que se apaixonou pelo Japão e que conhecemos há dias (aqui), dedicou, na sua obra Relance da Alma Japonesa, algumas páginas às geisha (gueixas), bem como a uma outra classe de mulheres que não devem ser confundidas com aquelas.
Tenha-se em atenção que Wenceslau escreveu este texto há cerca de um século, retratando a realidade tal como a viveu e sentiu. Do mesmo modo como fez, cerca de vinte anos depois dele, o também português Ferreira de Castro, que passou - ainda que episodicamente - pelo Japão e que aí abordou este mesmo tema das geisha - ver aqui.
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"Eu
vou falar de duas classes de mulheres japonesas, as gueixas (geisha) e
as … outras, estas bem mais abaixo do que aquelas na escala social e bem mais
pobres do que elas.
Mas o que são as gueixas?
Na Europa tem-se uma ideia muito
vaga e imperfeita sobre elas, por não haver por lá uma profissão feminina que à
das gueixas se compare.
As gueixas não são, propriamente, seres votados a uma
existência viciosa, de depravação.
São em geral filhas de lares de miséria
extrema que receberam do destino o privilégio de terem nascido gentis, bonitas,
cativantes.
Qualquer individuo, daqueles que se dão ao trabalho de cultivar, em
seu próprio proveito, estas pobres flores humanas, adquire-as, ainda crianças,
por adopção ou outro meio.
As gueixas começam então a receber, pouco a pouco,
lentamente, uma educação particularíssima, complicadíssima e em parte
delicadíssima; aprendem a tocar na perfeição pelo menos um instrumento indígena,
aprendem a cantar, aprendem a dançar, aprendem a vestir-se ricamente, de sedas
magnificas.
Aprendem também a ser agradáveis aos homens, quando convivas em banquetes,
nas chaya (casas de chá), onde serão chamadas, pagas a tanto por
cada hora, servindo então os mesmos convivas (homens, porque as damas não
frequentam as chaya), enchendo-lhes de saké (o vinho indígena)
as pequenas taças de porcelana, e finalmente tornando aprazível o tempo que
decorre, mercê do seu tagarelar gracioso, dos seus gestos - todos arte e
gentileza - e das prendas que exibem - música, dança, canto - tudo coroado pelo
esplendor da sua beleza.
Nada mais, e nada menos.
Descer ou subir a intimidades
mais flagrantes é-lhes interdito pelos regulamentos da polícia e outras
medidas.
No Japão, em todas as classes sociais, ainda as mais distintas, quando
se oferece um jantar a amigos, na chaya, é da praxe mandar chamar as gueixas,
que são, incontestavelmente, a mais cativante presença num festim, sem nada que
venha chocar vistas investigadoras do estranho, por exemplo do europeu, que
tome parte na função.
Pelo contrário: os europeus que hajam assistido a alguns
destes banquetes guardam uma impressão de enlevo que fica para sempre.
Quanto
à moralidade das gueixas, que a polícia protege, que poderei dizer aqui? A
vigilância da polícia não pode ser absoluta e infalível.
Mulheres formosas,
dotadas de mil atractivos, em frequente convivência com os fregueses habituais
da chaya, cortejadas por eles e cortejando-os, alminhas pervertidas pela
longa educação a que são submetidas, as gueixas – terror das famílias, cujos
filhos acaso se perderão algum dia por uma delas até ao ponto de querê-la por
esposa - não devem certamente ser tomadas como modelos de castidade e de
candura... Estão mesmo muito longe disto.
Uma ou outra
casará talvez, será feliz talvez. Mas uma grande maioria, privada para sempre do
amparo e dos confortos de um lar amigo, passando todas as noites em festas,
obrigadas por condescendência a fartas libações de saké, espera-as
evidentemente um fim prematuro, triste, esmagadas pela fadiga e por doença.
O outro grupo de moças - das quais já fiz menção, bem mais abaixo do que as geisha na escala social - procede da mesma origem, da miséria implacável, que leva a todos os desmandos e arrasta as suas vítimas até aos luxuosos casarões das grandes cidades, onde os seus encantos naturais têm procura.
Não é geralmente o
vício que as empurra; elas são umas simples meninas, de dezasseis anos, de
vinte anos quando muito, que viveram até então a vida que todas as moças do seu
meio vão levando. Mas morreu o pai, ou ficou entrevado; a mãe, atarefada, sem
recursos, já não tem mais que vender para comprar arroz para as crianças.
Demora-se na cidade dois anos, três anos, quatro anos, conforme.
Depois, regressa ao lar. Sim, regressa ao lar; pelo menos, assim julga que
suceda. Mas, num grande número de casos, é nalgum dos hospitais das grandes
cidades que terminam o seu fadário essas pobres meninas, apodrecidas em
doenças.
Se logram volver ao lar, ai, pobres moças! ... murchou-se-lhes
de todo e para sempre o frescor da mocidade; nunca poderão ser esposas e mães
sadias, embora, no seu meio, encontrem maridos complacentes…
Mais
umas rápidas considerações sobre as geisha.
Reconheça-se que estas moças exerceram
durante alguns anos, inconscientemente - qual de vós o julgaria? - missões de alta diplomacia na política mundial, quando o Japão, entrado apenas na nossa
civilização, não tivera ainda tempo de criar simpatias na Europa e na América pela bravura dos seus soldados e pelo estrondo dos seus canhões. [Nota da Torre - O Japão tinha vencido em 1905 uma guerra com a poderosa Rússia dos czares - recordar aqui]
Os turistas de raça branca, que vinham ao Japão, eram poucos então. Mas esses poucos, em
geral rapazes descuidados, com bastante dinheiro nas algibeiras e amigos de
prazeres excluídos dos lares honestos, iam procurar as geisha, às quais pediam um sorriso, uma carícia, que recebiam, e com mil vezes mais
graça e mais decência do que as que eles estavam acostumados a encontrar por
esse mundo fora.
Foram esses sorrisos e essas carícias, divulgados
discretamente em palestras, quando não em livros de viagens, que deram origem às primeiras correntes de simpatia dos países de raça branca pelo Japão, o que
era evidentemente bem melhor do que correntes de antipatia (...)."
Dança Tradicional - Maiko
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