Quadro de Cássio Mello |
"(…) Bastará lembrarmo-nos
de que o Ribatejo é a região do gado bravo. Daqui o natural e necessário esforço
do homem, a que desde pequeno se habitua, para viver entre vacas e touros criados
em plena liberdade e bravura, e que é preciso subjugar pelo valor e pela astúcia
até submetê-los ao trabalho agrícola.
Julga-se falsamente, no norte
do país, que a criação do gado bravo no Ribatejo constitui apenas uma indústria
tauromáquica. Não, é um erro: ela representa um alto valor económico, que se obtém
à custa de um contínuo e arriscado trabalho.
A propriedade, nas províncias
setentrionais do país, está dividida e retalhada: é a quinta, o campo, a bouça
ou a horta. Aqui, como no Alentejo, percorrem-se léguas e léguas de terrenos pertencentes
a um mesmo proprietário. A propriedade é vasta, imensa, a perder de vista. Proporciona
as grandes colheitas e a criação das grandes manadas e rebanhos.
A vida do lavrador ribatejano
torna-se, portanto, muito mais trabalhosa e o campino — designando por esta expressão
todo o serviçal da lavoura ribatejana — é por via de regra um homem afoito e valente
que todos os dias põe em jogo a sua vida com uma indiferença estóica singularmente
admirável.
Quadro de Simão da Veiga |
Há, no homem do Ribatejo,
o que quer que seja de forte e de simples, de atlético e indiferente, que parece
conservar a expressão das idades primitivas, quando a força física e a serenidade
de ânimo eram precisas ao homem para lutar com os monstruosos animais pré-historicos.
A natureza deu-lhe a bravura calma e a astúcia ingénita necessárias para
subjugar as reses bravas, acudindo-lhe com a astúcia quando a valentia não basta.
Também o dotou com uma certa
tendência contemplativa, espécie de identificação, plácida e concentrada, com a
vasta paisagem que o rodeia, onde a solidão é profunda e profundo é o silêncio,
apenas de quando em quando entrecortado pelo mugido do touro, pelo uivo do lobo,
pelo chocalho das manadas e rebanhos.
O perigo que, por via de
regra, assusta o homem em qualquer parte, é no Ribatejo o pão nosso de cada dia,
um hábito, um costume, em vez de ser, como noutras regiões do país, uma surpresa
ou uma eventualidade. Aqui, a natureza, favorecendo, por condições especiais, a
criação do gado bravo, pôs harmoniosamente, ao lado dele, o homem forte e sadio,
robusto e tranquilo, que tem de viver e lutar quotidianamente com as reses
possantes e manhosas. (…)
(…) Esta irrequieta
colónia bovina não deixa um momento de paz e descanso aos homens a quem está
confiada, e cujo trabalho é incessante, desde a difícil operação da desmama dos
bezerros até à amansia do touro.
(…) A luta, no Ribatejo,
entre o homem e o touro, quando há necessidade de recorrer a esse extremo, efectua-se
frente a frente, toma o carácter de um combate singular, sempre arriscado, porque
nós, os Portugueses, picamos o touro por diante, ao contrário dos Espanhóis, que
o mandam pela anca.
E, contudo, apesar das
contingências desastrosas a que o campino está constantemente sujeito, todas as
operações, em que ele é chamado a intervir na vida e na liberdade das manadas, tomam
um ar de folia local que sobrepõe a alegria à consciência e temor do perigo." (*)
"Fandangando"
Orquestra Típica Scalabitana
Santarém - Ribatejo
Portugal
(*) Alberto Pimentel – A Extremadura
Portugueza – 1.ª Parte – O Ribatejo – Lisboa, 1908, pp. 35-36 (ortografia
actualizada).