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"Um dia, um colega meu, condiscípulo desde os bancos da Escola Médica e bromatologista distinto, pediu-me que lhe dissesse o que se comeu e como se comeu em Portugal no século XVIII, século que passa, e com razão, por ter sido aquele em que se comeu mais - e pior.
Vou satisfazer o
desejo do meu amigo (…).
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Nós somos,
evidentemente, um país de intoxicados.
Não erraria muito
quem fosse até ao extremo paradoxal de atribuir aos erros e às exuberâncias da
cozinha portuguesa todos os desastres políticos que nos têm afligido.
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A nossa planturosa
cozinha de artríticos, duma abundância monacal, com leitões e vitelas inteiras nadando em molho dentro de bandejas de prata,
tem, pelo menos, graves responsabilidades nas grandes catástrofes nacionais.
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Ainda há-de aparecer
um filósofo de bom humor que demonstre, quando finalmente se der valor aos
infinitamente pequenos da História, que Tânger e Alcácer-Kibir, por exemplo, foram
dois casos vulgares de hiper-intoxicação alimentar.
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O português comeu
sempre muito - com a agravante de ter comido sempre mal (…).
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(…)
O marquês de Pombal, mais sóbrio, vendo que no próprio paço se comia
desordenadamente, voltou a fazer o que já no século XIII fizera Estêvão Anes, e
publicou, em 1765, o regulamento da ucharia e cozinha da casa Real. [ucharia --> despensa; depósito de alimentos]
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Mas desse regímen de sobriedade, que ele estabeleceu também na sua economia doméstica, resultou pouco depois um episódio curioso, quando o abade de Alcobaça, que oferecera ao marquês um jantar formidável, foi convidado, por seu turno, para jantar na casa da rua Formosa.
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Já
no fim do banquete, para que Sebastião José de Carvalho [marquês de Pombal]
mandara preparar uma coberta de princípios de copa, outra de potagens, outra de
massas, outra de assados e outra de doces e frutas, com dez pratos diferentes
cada uma, o marquês notou com estranheza que o gigantesco abade tinha
comido devoradoramente de todos os cinquenta pratos sem beber um só gole de
vinho, e fez-lho notar, com a maior cortesia, apontando o Xerez, o Porto, o
velho Rheno e o Lacrima Christi que o rodeavam em garrafas de vidro doirado:
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Vossa Reverência não quis honrar os
vinhos da minha frasqueira…
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O
abade acabou de mastigar um bocado de lombo, poisou o garfo de prata sobre a
toalha de rendas, e, acostumado aos intermináveis jantares do convento,
respondeu, com a maior naturalidade do mundo:
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É que eu, senhor marquês, só começo a
beber vinho do meio do jantar em diante…
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Todo
o poema da gulodice monástica do século XVIII está nesta ingénua frase do dom
abade de Alcobaça.”
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Júlio Dantas, Figuras d’Ontem e d’Hoje
(Como se comia em Portugal no século XVIII),
Livraria Chardron, Porto, Portugal, ano de 1914 (págs. 171-178).
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