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sábado, 20 de fevereiro de 2021
As segundas mães (Tempos de escravatura e servidão: amas-de-leite negras para crianças brancas)
Ama-de-leite é uma mulher que amamenta crianças alheias, ou seja, filhos ou filhas de outras mulheres que, por qualquer razão, não queiram, ou não possam, amamentar a própria prole.
Trata-se de prática que remonta aos primórdios da Humanidade. Consta, por exemplo, de velhos textos da Babilónia com cerca de 4000 anos (Código de Hamurábi). Também na Grécia e na Roma antigas se acha documentado este tipo de procedimento, igualmente designado por amamentação cruzada.
A ama-de-leite foi figura e recurso frequente na Europa dos últimos séculos, sobretudo nas camadas sociais mais favorecidas, em que, por razões de saúde ou por mero comodismo, as mães recentes delegavam noutras mulheres, por regra mais pobres ou delas economicamente dependentes, a alimentação dos seus próprios filhos.
Como é natural, este costume acompanhou por toda a parte as nações europeias expansionistas, como Portugal e Espanha. Com a intensificação da escravatura transatlântica, de origem africana, a amamentação cruzada conheceu patamares antes insuspeitados.
A razão é evidente: passavam a estar disponíveis em abundância, nas parcelas coloniais das nações europeias, milhares de jovens negras sadias e produtoras de um leite que, segundo se pensava então, era mais rico e fortificante do que o das parturientes brancas.
Este hábito enraizou-se no Brasil e por toda a América escravocrata. Tornou-se comum, nas casas senhoriais, entregar a responsabilidade da aleitação dos bebés brancos às jovens escravas que tivessem sido mães recentemente.
Por vezes era permitido a estas amas-de-leite que alimentassem, simultaneamente, o seu filho. Noutras ocasiões, porventura maioritárias, as coisas não se passavam assim: o aleitamento da criança negra era confiado a outras escravas enquanto a sua mãe se mudava para a casa grande para alimentar o filho ou a filha dos senhores.
Às vezes a solução podia ser mais desumana, quando a criança negra era encaminhada para a Roda dos Expostos, perdendo todo o vínculo com a progenitora. Era este o lado mais triste e trágico desta prática.
A jovem mãe escrava, agora transformada em ama-de-leite da criança branca, recebia em regra melhor tratamento do que aquele que lhe fora dispensado até então. Integrada no círculo mais próximo dos senhores, alimentava-se melhor, vestia bem, acompanhava a família para toda a parte.
Mantinha sobretudo um contacto quase permanente com a criança branca, da qual cuidava muito para além do acto da amamentação. Juntas brincavam, juntas trocavam histórias e mimos, juntas riam e choravam, juntas partilhavam experiências e emoções - justamente o que se esperaria de uma relação mãe-filho.
Para crianças de tão tenra idade, a viverem os seus primeiros anos, não existiam, evidentemente, nem os preconceitos raciais nem as interdições de convívio que caracterizavam as sociedades escravocratas. Motivo pelo qual, em inúmeros casos, se desenvolviam e solidificavam entre a criança e a ama, com carácter de reciprocidade, fortíssimas ligações afectivas, que com frequência perdurariam pela vida fora.
O convívio quotidiano entre os dois ultrapassava amiúde o período da aleitação, o que fazia com que as amas-de-leite se tornassem amas-secas dos filhos e filhas dos senhores, acompanhando o seu crescimento e educação durante a primeira infância.
Deste modo, com a passagem do tempo, a escrava convertia-se numa segunda mãe da criança branca. Como escreveu Gilberto Freyre: Muito menino brasileiro do tempo da escravidão foi criado inteiramente pelas mucamas. Raro o que não foi amamentado por negra.
Os laços de afeição entre a ama negra e a sua cria de leite podiam tornar-se tão profundos que a separação de ambos, quando ocorria, era extremamente dolorosa.
Conta-se, como exemplo entre muitos, o caso da ama-de-leite Júlia Monjola, a escrava que amamentou, no Brasil, uma criança branca francesa - Marta Expilly.
O pai de Marta era Charles Expilly, que um dia teve de abandonar o país com toda a família, deixando Júlia para trás.
Mais tarde, numa carta comovida e comovedora para sua filha (escrita em 1863), Charles evocava o terrível instante em que as duas se separaram. E lembrava o pedido que a negra Júlia Monjola fizera ao ouvido da menina branca que fora sua cria de leite:
Ela pediu-te, entre lágrimas, que nunca te esquecesses daquela que todos os dias te embalava nos braços e te fazia adormecer no seu seio. E, se algum dia fosses rica, que a comprasses para ser só tua.
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"Mãe Negra" Voz: Paulo de Carvalho (Portugal) Poema: Alda Lara (Angola)
"Mãe Preta" (Amamenta o bebé branco, enquanto seu filho observa) (Quadro de Lucílio de Albuquerque)
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