quarta-feira, 4 de novembro de 2020

"Um Adeus às Armas" - A história de amor verídica que Hemingway transpôs para uma obra-prima



Ernest Hemingway, o grande romancista americano (ver aqui), participou na 1.ª Guerra Mundial, de 1914-1918, como motorista da Cruz Vermelha Norte-Americana.

Em Julho de 1918 ele estava em Fossalta, em plena frente de batalha do Piave, na Itália setentrional, quando uma granada austríaca explodiu perto da habitação onde se abrigavam soldados italianos.

Hemingway, que contava apenas 19 anos de idade na altura, achava-se entre eles e foi gravemente ferido por um estilhaço. Inicialmente transportado de ambulância para um hospital de campanha, em Treviso, foi depois levado até Milão, onde ficou internado no Ospedale Crosse Rossa Americana.

Conseguiu sobreviver, após ter sido submetido a duas operações. Convalescente, ainda no hospital, acabou por se apaixonar por uma das enfermeiras, Agnes Korowsky, natural de Washington, DC, sete anos mais velha do que ele.

O idílio perdurou enquanto o jovem Ernest permaneceu em Itália. Mas, em Janeiro de 1919, ele regressou a casa, em Oak Park, no Illinois, e dedicou-se a escrever sobre a sua experiência de guerra e sobre aquela paixão, embora de forma ficcionada.

Agnes ainda lhe escreveu apaixonadamente de Itália, onde ficara, mas o velho sentimento tinha morrido em Ernest. Ou melhor, tinha sido modificado e transportado por ele para o livro que tinha entre mãos, exactamente A Farewell to Arms - Um Adeus às Armas".

E foi assim que da morte de um amor juvenil nasceu a tórrida, sofrida, trágica e inesquecível paixão de um condutor de ambulâncias na frente de guerra italiana, Frederic Henry, por uma enfermeira inglesa, Catherine Barkley... Uma obra-prima.




Transcreve-se seguidamente a memorável abertura de "Um Adeus às Armas" - em que Hemingway desenha, com insuperável maestria, o quadro de desolação, épico e ameaçador, característico de todas as grandes guerras.

 Natureza, homens e máquinas combinam-se para deixar no leitor, logo às primeiras frases, um sentimento de apreensão e de tragédia pressentida, quase irreal.

E nem falta o contraste semi-humorístico do minúsculo rei de Itália, Vítor Emmanuel III (que tinha pouco mais de metro e meio de altura) a passar velozmente no seu carro de inspecção, pairando como um pequeno guerreiro de ficção sobre o cenário da batalha que se adivinha iminente e brutal...

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"No final do Verão daquele ano, ocupávamos uma casa, numa aldeia, de onde, além do rio e da planície, víamos as montanhas.
O leito do rio era coberto de cascalho e de pedras, que ao sol pareciam secos e esbranquiçados. A água era de um azul límpido, escorrendo pelos canais.

As tropas passavam pela casa, seguindo estrada abaixo, e a poeira que erguiam cobria as folhas das árvores. Também os troncos das árvores estavam empoeirados.
As folhas caíram cedo naquele ano. Víamos as tropas em marcha pela estrada, a poeira flutuando e as folhas caindo ao sopro do vento, e, depois que os soldados passavam, a estrada ficava branca e nua, com excepção das folhas.

A planície abundava de plantações, muitos pomares com árvores frutíferas e, para lá da planície, as montanhas pardas e calvas. Havia combates nas montanhas, e, à noite, podíamos enxergar os clarões da artilharia. Na escuridão pareciam os relâmpagos do Verão, mas as noites eram frias e não havia aquela sensação de uma tempestade chegando.



Às vezes, na escuridão, ouvíamos o rumor de tropas em marcha logo abaixo da janela, com os canhões puxados por tractores. Havia movimento intenso e muitas mulas nas estradas com caixas de munições em ambos os flancos das suas selas, e camiões cinzentos, abarrotados de homens, deslizando lentamente, alguns com as cargas cobertas de lona. Havia ainda grandes canhões, que passavam de dia, também puxados por tractores, os canos longos camuflados com arbustos, galhos folhosos e videiras.

Olhando para o norte, víamos, além da planície, uma floresta de castanheiros; depois, a montanha daquele lado do rio. Houve luta encarniçada pela posse dos morros, mas sem resultado.

No outono, com a chuva, caíram todas as folhas dos castanheiros. Os galhos ficaram despidos e os troncos enegreceram com a humidade. Os vinhedos tornaram-se varas finas e nuas, e por toda a região pairou a tristeza e a morte, algo típico do Outono.



Havia névoa sobre o rio e nuvens sobre a montanha longínqua. Os camiões chapinhavam e espirravam lama, e os soldados marchavam sujos de barro e de capotes molhados. As espingardas estavam encharcadas, e, por baixo dos capotes, as duas cartucheiras de couro cinzento na frente do cinturão, bastante pesadas com os cartuchos de 6,5 mm alongados e finos, engrossavam tanto as silhuetas que faziam os homens parecerem grávidos de seis meses.

Pequenos automóveis cinzentos passavam ligeiros. Na maioria das vezes havia um oficial no assento ao lado do motorista e outros no banco traseiro. Os automóveis espirravam mais lama do que os camiões.

Se um dos oficiais do banco de trás fosse muito baixo e viesse entre dois generais, mesmo que fosse tão pequeno que não conseguíssemos ver o seu rosto mas apenas o boné e as costas estreitas, e se esse carro, além disso, avançasse mais velozmente do que os outros, provavelmente esse oficial seria o rei. Ele fixara-se em Udine e passava por ali amiúde para verificar pessoalmente como corriam as coisas. E as coisas corriam bastante mal.
No início do Inverno vieram as chuvas ininterruptas. E com as chuvas chegou o cólera. Felizmente a epidemia foi combatida a tempo, e apenas sete mil soldados morreram vítimas dela."

Ernest Hemingway (1899-1961)

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