sábado, 24 de julho de 2010

Aberturas de Grandes Livros - "Eurico, o Presbítero" (Alexandre Herculano - Portugal)

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Reino dos Visigodos, na Península Ibérica (Anos de 507 a 711)
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"A raça dos visigodos, conquistadora das Espanhas, subjugara toda a Península havia mais de um século. Nenhuma das tribos ger­mânicas que, dividindo entre si as províncias do império dos césares, tinham tentado vestir sua bárbara nudez com os trajos despedaçados, mas esplêndidos, da civilização romana soubera como os godos ajun­tar esses fragmentos de púrpura e ouro, para se compor a exemplo de povo civilizado.

Leovigildo expulsara da Espanha quase que os derradeiros soldados dos imperadores gregos, reprimira a audácia dos francos, que em suas correrias assolavam as províncias visigó­ticas d'além dos Pirinéus, acabara com a espécie de monarquia que os suevos tinham instituído na Galécia e expirara em Toledo depois de ter estabelecido leis políticas e civis e a paz e ordem públicas nos seus vastos domínios, que se estendiam de mar a mar e, ainda, transpondo as montanhas da Vascônia, abrangiam grande porção da antiga Gália narbonense.

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Desde essa época, a distinção das duas raças, a conquistadora, ou goda, e a romana, ou conquistada, quase desaparecera, e os homens do norte haviam‑se confundido juridicamente com os do meio‑dia em uma só nação, para cuja grandeza contribuíra aquela com as virtudes ásperas da Germânia, esta com as tradições da cultura e política romanas.

As leis dos césares, pelas quais se regiam os vencidos, misturaram‑se com as singelas e rudes instituições visigóticas, e já um código único, escrito na língua latina, regulava os direitos e deveres comuns quando o arianismo, que os godos tinham abraçado abraçando o evangelho, se declarou vencido pelo catolicismo, a que pertencia a raça romana. Esta conversão dos vencedores à crença dos subjugados foi o complemento da fusão social dos dois povos.


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A civilização, porém, que suavizou a rudeza dos bárbaros era uma civi­lização velha e corrupta. Por alguns bens que produziu para aqueles homens primitivos, trouxe‑lhes o pior dos males, a perversão moral. A monarquia visigótica procurou imitar o luxo do império que mor­rera e que ela substituíra. Toledo quis ser a imagem de Roma ou de Constantinopla. Esta causa principal, ajudada por muitas outras, nascidas em grande parte da mesma origem, gerou a dissolução política por via da dissolução moral.

Debalde muitos homens de génio, revestidos da autoridade su­prema, tentaram evitar a ruína que viam no futuro: debalde o clero espanhol, incomparavelmente o mais alumiado da Europa naquelas eras tenebrosas e cuja influência nos negócios públicos era maior que a de todas as outras classes juntas, procurou nas severas leis dos concílios, que eram ao mesmo tempo verdadeiros parlamentos políticos, reter a nação que se despenhava. A podridão tinha chegado ao âmago da árvore, e ela devia secar.
O próprio clero se corrompeu por fim. O vício e a degeneração corriam soltamente, rota a última barreira.
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Foi então que o célebre Roderico se apossou da coroa.
Os filhos do seu predecessor Vítiza, os mancebos Sisebuto e Ebas, disputaram­‑lha largo tempo; mas, segundo parece dos escassos monumentos históricos dessa escura época, cederam por fim, não à usurpação, porque o trono gótico não era legalmente hereditário, mas à fortuna e ousadia do ambicioso soldado, que os deixou viver em paz na própria corte e os revestiu de dignidades militares.

Daí, se dermos crédito a antigos historiadores, lhe veio a última ruína na batalha do rio Críssus, ou Guadalete, em que o império gótico foi aniquilado.
No meio, porém, da decadência dos godos, algumas almas conser­vavam ainda a têmpera robusta dos antigos homens da Germânia. Da civilização romana elas não haviam aceitado senão a cultura intelectual e as sublimes teorias morais do cristianismo.

As virtudes civis e, sobretudo, o amor da pátria tinham nascido para os godos logo que, assentando o seu domínio nas Espanhas, possuíram de pais a filhos o campo agricultado, o lar doméstico, o templo da oração e o cemitério do repouso e da saudade.



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Nestes corações, onde reinavam afectos ao mesmo tempo ardentes e profundos, porque neles a índole meridional se misturava com o carácter tenaz dos povos do norte, a moral evangélica revestia esses afectos de uma poesia divina, e a civilização ornava‑os de uma expressão suave, que lhes realçava a poesia.

Mas no fim do século sétimo eram já bem raros aqueles em quem as tradições da cultura romana não havia subjugado os instin­tos generosos da barbaria germânica e a quem o cristianismo fazia ainda escutar o seu verbo íntimo, esquecido no meio do luxo profano do clero e da pompa insensata do culto exterior.
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Uma longa paz com as outras nações tinha convertido a antiga energia dos godos em alimento das dissensões intestinas, e a guerra civil, gastando essa energia, havia posto em lugar dela o hábito das traições covardes, das vinganças mesquinhas, dos enredos infames e das abjecções am­biciosas.

O povo, esmagado debaixo do peso dos tributos, dilacerado pelas lutas dos bandos civis, prostituído às paixões dos poderosos, esquecera completamente as virtudes guerreiras de seus avós.
As leis de Vamba e as expressões de Ervígio no duodécimo concílio de Toledo revelam quão fundo ia nesta parte o cancro da degeneração moral das Espanhas.


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No meio de tantos e tão cruéis vexames e pade­cimentos, o mais custoso e aborrecido de todos eles para os afemina­dos descendentes dos soldados de Teodorico, de Torismundo, de Teudes e de Leovigildo era o vestir as armas em defensão daquela mesma pátria que os heróis visigodos tinham conquistado para a legarem a seus filhos, e a maioria do povo preferia a infâmia que a lei impunha aos que recusavam defender a terra natal aos riscos gloriosos dos combates e à vida fadigosa da guerra.
Tal era, em resumo, o estado político e moral da Espanha na época em que aconteceram os sucessos que vamos narrar (...).
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(….) O presbitério, situado no meio da povoação, era um edifício humilde, como todos os que ainda subsistem levantados pelos godos sobre o solo da Espanha.


Cantos enormes sem cimento alteiam‑lhe os muros; cobre‑lhe o âmbito um tecto achatado, tecido de grossas traves de carvalho subpostas ao ténue colmo: o seu portal profundo e estreito pressagia de certo modo a misteriosa portada da catedral da Idade Média: as suas janelas, por onde a claridade, passando para o interior, se transforma em tristonho crepúsculo, são como um tipo indeciso e rude das frestas que, depois, alumiaram os templos edificados no décimo quarto século, através das quais, coada por vidros de mil cores, a luz ia bater melancólica nos alvos panos dos muros gigantes e estampar neles as sombras das colunas e arcos enredados das naves.

(...) O presbítero Eurico era o pastor da pobre paróquia de Cartéia.
Descendente de uma antiga família bárbara, gardingo na corte de Vítiza, depois de ter sido tiufado ou milenário do exército visigótico, vivera os ligeiros dias da mocidade no meio dos deleites da opulenta Toledo.

Rico, poderoso, gentil, o amor viera, apesar disso, quebrar a cadeia brilhante da sua felicidade.
Namorado de Hermengarda, filha de Favila, duque de Cantábria, e irmã do valoroso e depois tão célebre Pelágio, o seu amor fora infeliz (...)".
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Eurico, o Presbítero (Os Visigodos) - Alexandre Herculano - Portugal (1810-1877)
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8 comentários:

Curiosa disse...

Pode esclarecer-me sobre o que sucedeu aos Visigodos no ano de 711? A legenda da primeira gravura subentende que seu reino findou nesse ano. Porquê?
Por outro lado, tenho uma dúvida: o autor, Herculano, fala diversas vezes de "Espanha". A Espanha já existia nessa altura? Confesso-me confusa... Obrigada por sua atenção.

Cavaleiro da Torre disse...

Cara Curiosa: a monarquia visigótica chegou ao fim com a invasão muçulmana do ano de 711 (comandada por Tariq ibn Ziyad, vindo do Norte de África com alguns milhares de berberes islamizados). Restaram algumas bolsas de resistência cristã, no Norte da Península Ibérica. Com o tempo, e com a progressiva reconquista do território, iriam dar origem a uma série de reinos cristãos (Astúrias, Leão, Castela, Navarra, Aragão, Portugal...).
Quanto à segunda questão: quando fala em "Espanha", ou "Espanhas", Herculano não está a referir a entidade política (ou país) que conhecemos actualmente sob essa denominação (nesse tempo ainda não existia). Está a referir-se a uma entidade geográfica e cultural correspondente à totalidade do território e povos da Península Ibérica. É a velha "Ispania", ou "Spania" (Hispânia) dos antigos documentos gregos, que assim chamavam à Península. Nesse sentido, durante séculos, os habitantes dos diversos países ibéricos consideraram-se "espanhóis" (portugueses incluídos). Por exemplo, quando o poeta português Luís de Camões (séc. XVI) fala da "nobre Espanha, cabeça da Europa toda", não está a mencionar a entidade política "Espanha" (país), mas sim o conjunto de países ibéricos, onde se integrava, também, Portugal. Sempre que Camões queria aludir aos nossos vizinhos, chamava-lhes, e bem, Castela. Isto durou, sensivelmente, até ao século XVII, quando Portugal se libertou da dominação castelhana (que foi de 1580 a 1640). A partir daí, e tendo a "Espanha-país" (que já tinha absorvido Aragão e Navarra) adoptado definitivamente a designação "Espanha", os portugueses passaram a considerar-se, por contraposição, "não-espanhóis". A Península ficou assim dividida em apenas dois países: a "Espanha" e a "Não-Espanha" (Portugal)... Espero ter sido claro. Volte sempre.

Curiosa disse...

Perfeitamente claro. Muito obrigada mais uma vez. Voltarei.

La Nostra Italia disse...

Ao ler seu post referente a Herculano, lembrei-me das minhas aulas de Literatura Portuguesa na faculdade...

Ótimas ilustrações!

Um abraço

Cavaleiro da Torre disse...

Cara Juliana, este Alexandre Herculano, para além de notável historiador, poeta, romancista e polemista, ficou recordado em Portugal como um homem de vida exemplar, símbolo de coerência e de integridade. Tal como hoje, isso era então coisa rara... Um dos imperadores do Brasil fez questão de o visitar em sua quinta de Vale de Lobos, nos arredores da cidade de Santarém (para onde ele se retirara, nos últimos anos, desiludido com a situação portuguesa). Um abraço.

La Nostra Italia disse...

Muito obrigada pelo complemento!
Não conhecia este episódio da vida de Alexandre Herculano e nem a vida exemplar que seguia.
Um abraço e uma boa semana

Anónimo disse...

Esclarecimento a Sra. Juliana, sobre sua pergunta PARA ONDE FORAM OS VISIGODOS, os visigodos depois de 711 se refugiaram no condado de Coimbra em torno dos Witizanos condes de Coimbra e com eles por chefes da nação dos visigodos de todas as regiões da Iberia, os nobres descendentes dos conde s de Coimbra no séc. XII irão fundar Portugal. As principais famílias portuguesas nas origens visigóticas são ; Sousa, Valadares, Carvalho, Moreira, Correia, Ferraz, Melo,, Guedes, Baião, se juntaram a estes visigodos, os godos-lombardos, na família dos Pereira, além destas muitas outras de visigóticas ascendências. Te recomendo ler Historia de Portugal de Alexandre Herculano. Saudações visigodos.

Anónimo disse...

Esclarecimento a Sra. Juliana, sobre sua pergunta PARA ONDE FORAM OS VISIGODOS, os visigodos depois de 711 se refugiaram no condado de Coimbra em torno dos Witizanos condes de Coimbra e com eles por chefes da nação dos visigodos de todas as regiões da Iberia, os nobres descendentes dos conde s de Coimbra no séc. XII irão fundar Portugal. As principais famílias portuguesas nas origens visigóticas são ; Sousa, Valadares, Carvalho, Moreira, Correia, Ferraz, Melo,, Guedes, Baião, se juntaram a estes visigodos, os godos-lombardos, na família dos Pereira, além destas muitas outras de visigóticas ascendências. Te recomendo ler Historia de Portugal de Alexandre Herculano. Saudações visigodos.