segunda-feira, 2 de março de 2009

Aberturas de Grandes Livros - "Esta Noite a Liberdade" (Sobre a independência da Índia)


“Um grande povo passava um Inverno descontente.
Mergulhada em nevoeiro e melancolia, Londres, naquele primeiro de Janeiro de 1947, tremia de frio. Talvez nunca até então a capital britânica tivesse passado um dia de Ano Novo tão lúgubre. Poucas eram, naquela manhã de festa, as casas que possuíssem água quente suficiente para encher uma banheira. E eram ainda mais raros os londrinos sofredores da habitual ressaca do seu “réveillon”. O pouco whisky à venda para as festas conseguira-se ao preço de oito libras esterlinas a garrafa. Apenas alguns carros deslizavam nas ruas desertas, fantasmas fugazes de uma nação privada de gasolina.

Envoltos nos seus sobretudos coçados e fora de moda após seis anos de guerra, ou em fardas disparatadas e gastas, alguns transeuntes apressavam-se com o pescoço encolhido nos ombros, de ar aborrecido. Nos dias de chuva, um cheiro especial invadia as ruas, e relentos de podridão e incêndio escapavam-se das ruínas espalhadas pela cidade. As docas e o bairro em volta da catedral de São Paulo exibiam ainda uma confusão de escombros. Sinistros abrigos de betão erguiam-se também nalgumas encruzilhadas, e arames farpados juncavam os canteiros de Green Park.
Esta cidade triste e martirizada era contudo a capital de um país vencedor. Dezassete meses antes, a Inglaterra ganhara a guerra mais terrível da história da humanidade. (…)

(…) A sombria realidade que a Inglaterra encarava naquela manhã de Ano Novo fora resumida numa fase cruel do seu maior economista. “Somos um país pobre”, afirmara John Maynard Keynes aos seus compatriotas, “e temos que aprender a viver como tal”.
Todavia, os ingleses eram ricos. Um documento azul e dourado, o passaporte britânico, dava-lhes o privilégio de entrarem livremente em mais territórios do que qualquer outro cidadão de qualquer outro país do mundo. O extraordinário conjunto de possessões, de colónias, de protectorados e de condomínios que constituíam o Império Britânico permanecia intacto naquele dia 1 de Janeiro de 1947.
A existência de 563 milhões de homens – fantástico mosaico de povos, Tamuls e Chineses, Bushmen e Hotentotes do sudoeste africano, aborígenes dravidianos e Melanesianos, Australianos, Escoceses, Canadianos e tantos outros – dependia ainda das decisões destes ingleses que tremiam de frio numa Londres sem aquecimento. (…)”

Esta Noite a Liberdade - Dominique Lapierre (n. 1931) e Larry Collins (1929-2005) (Publicado por Edições Ática, Lisboa, 1976)

Nota - Disponível na Biblioteca Nacional de Lisboa, numa edição do Círculo de Leitores (Cota --- H.G. 30583 V.)

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