Spínola com os seus oficiais no teatro de operações. De camuflado, monóculo, luvas e pingalim. |
O
general António Sebastião Ribeiro de Spínola foi, entre 1968 e 1973, o
penúltimo governador e comandante-chefe das Forças Armadas portuguesas na então
colónia da Guiné-Bissau.
No ano seguinte ao do termo da comissão, e após o
golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 em Portugal, seria mandatado pelos
revoltosos para receber o poder das mãos do primeiro-ministro Marcelo Caetano,
entretanto cercado no quartel do Carmo, em Lisboa. Tornar-se-ia nesse mesmo dia
presidente da Junta de Salvação Nacional e, posteriormente, Presidente da
República de Portugal (cargo que ocuparia por breves meses).
Na
Guiné-Bissau, colónia difícil, pantanosa, de pequena expressão territorial
(pouco mais de um terço da superfície de Portugal) e ameaçada por bases
inimigas localizadas em países limítrofes (Senegal, Guiné-Conacri), as tropas portuguesas
enfrentavam a mais difícil das três frentes em que combatiam na época (as
outras eram Angola e Moçambique).
No ano de 1973, as Forças Armadas dispunham, na Guiné-Bissau, de 58 000 homens, dos quais 36 000 oriundos de Portugal e cerca de 22 000 recrutados localmente para as chamadas Forças Africanas (Comandos e Fuzileiros Africanos, Milícias, Autodefesas, etc.).
No comando absoluto deste efectivo, o general
António de Spínola combinava as acções de combate no terreno (onde ele
comparecia com frequência, correndo os riscos inerentes) com campanhas maciças
de propaganda e de acção psicológica, visando a conquista de adesões entre as
populações autóctones.
O
recentemente falecido coronel Otelo Saraiva de Carvalho, que viria a ser o
estratega do golpe de 25 de Abril de 1974, achava-se em comissão de serviço na
Guiné-Bissau desde 1970.
Detentor, na altura, do posto de capitão, não
pertencia propriamente às forças operacionais, pois fora colocado na Repacap (Repartição
de Assuntos Civis e Acção Psicológica). Essa posição permitiu-lhe uma relativa aproximação
ao general Spínola, cujo perfil e desempenho pôde observar durante os anos em
que coexistiram naquele teatro de guerra.
No seu livro Alvorada em Abril, publicado em 1977, Otelo de Carvalho procura delinear o retrato do famoso general. Torna-se evidente, ao correr de dezenas de páginas, que não morria de amores pelo comandante-chefe (a quem ele, e outros camaradas, chamavam o Velho). Nas suas próprias palavras: Admirando o Velho como chefe militar, não o respeitava como homem.
Assim,
ainda que lhe reconheça o carisma, as extraordinárias capacidades de liderança,
a enorme coragem física, a invulgar resistência e a inesgotável capacidade de
trabalho, Otelo atribui a Spínola o propósito de apenas desejar aproveitar a comissão na
Guiné para se projectar para voos mais altos. A sua ambição é um cavalo selvagem que
mal consegue dominar. Sabe o que quer e para onde vai. A Presidência da República
atrai-o com uma força irresistível.
Autoritário, sanguíneo, por vezes irascível, o general Spínola – segundo Otelo - conduzia os seus batalhões da Guiné através do medo. Com um perfil operacional inconfundível – de camuflado, monóculo, luvas e pingalim – o comandante-chefe tinha o hábito de poisar sem aviso junto de qualquer unidade, procurando detectar falhas, negligências ou o mais pequeno sinal de incompetência.
Foi
assim que muitos comandantes se viram afastados dos postos perante formaturas
dos seus homens, o que equivalia, praticamente, à morte militar do oficial
atingido. Mas o Velho, ainda de acordo com Otelo, colhia depois o fruto dessas
acções de terror auto-infligidas, obtendo das forças no terreno um elevadíssimo
nível de operacionalidade e eficácia – tudo à custa de dezenas de noites
insones, nervos esfrangalhados e envelhecimentos precoces.
O general Spínola mostrava-se particularmente atento à divulgação, pelos meios de comunicação social, da sua acção governativa e do seu modo de fazer a guerra. Quase sempre seguido pela imprensa e pelos meios televisivos, raro era o dia em que não tomava lugar num helicóptero para visitar um ou mais destacamentos militares, contactar populações nativas, inspeccionar a instrução de novas companhias de milícias, presidir a juramentos de bandeira ou inaugurar vários melhoramentos no território.
Tudo isto lhe granjeou, na Guiné, em Portugal e em muitos países estrangeiros, um prestígio imenso e uma auréola de “herói militar” que o transformou na personagem central de numerosas reportagens e figura frequentíssima em capas de revistas.
Otelo,
porém, admitindo embora as excelsas qualidades militares do general,
achava que este as aplicava, embora invocando permanentemente “a Pátria”, em
exclusivo proveito próprio, para seu engrandecimento e satisfação narcísica da
sua vaidade e da sua ambição pessoal. Os seus defeitos sobrepujavam as
qualidades (…) Medularmente vaidoso e autoritário, sempre o reconheci
totalmente incapaz de se atribuir o mínimo erro ou de debitar a mais suave
autocrítica. Sendo detentor da razão e da verdade absolutas, era com
displicência e sem remorso que liquidava o bode expiatório escolhido para arcar
com as responsabilidades de qualquer falhanço pessoal.
A
propósito da irresistível (por vezes quase suicida) inclinação de Spínola para o exibicionismo e a auto-promoção, Otelo de Carvalho narra um extraordinário episódio ocorrido entre
o general e um membro das milícias africanas, na povoação de Tite, margem sul
do rio Geba.
Por
essa altura, em Janeiro de 1971, estava de visita à Guiné-Bissau um jornalista
norte-americano, Jimmy Hoagland, correspondente do Washington Post em Nairobi.
Otelo, que dominava bem o idioma inglês, servia-lhe de cicerone nas suas
andanças pela colónia. Num dia em que o general Spínola tinha resolvido ir a
Tite para assistir à sessão final de instrução da milícia africana, Otelo levou
o visitante até lá e apresentou-o ao comandante-chefe.
Spínola passou revista aos novos combatentes, falou à formatura e presenciou com agrado as evoluções de ordem unida. De repente, perguntou: Qual é, de todos os instruendos, o melhor atirador? Os oficiais responsáveis fizeram avançar um negro baixo, de olhos vivos: É este, meu general. Chamamos-lhe “o Americano”. Jimmy Hoagland achou graça à coincidência e houve gargalhada geral entre os circunstantes.
Spínola perguntou ao rapaz: Então, olha lá: como é que gostas
mais de fazer fogo com a espingarda? De pé, de joelhos, deitado ou sentado? O
soldado respondeu que preferia ficar deitado no chão. Bom, então agora quero ver
a tua pontaria a cem metros do alvo. Deitas-te aqui e vais apontar e disparar
para o alvo que eu indicar.
O soldado obedeceu, encostou a arma à cara e
preparou-se para fazer fogo. Ante o espanto geral, o general encaminhou-se
calmamente para a zona dos alvos-silhueta, a cem metros de distância, e
postou-se junto de um deles. O comandante do batalhão, aflito, apressou-se a
acompanhá-lo, mas o general ordenou: Vá lá pró pé dos outros. O comandante,
um tenente-coronel, insistiu em ficar, mas Spínola não esteve pelos ajustes.
Vá lá para trás, já lhe disse. O comandante, que suava frio, retirou enfim.
O general apontou com o pingalim para um dos alvos, a um escasso metro de distância dele, e comandou: Estás a ver este? Atira para ele.
O comandante do batalhão, cada vez mais angustiado, torcia as mãos. O Americano, de olhos esbugalhados, esperava a ordem para disparar. Spínola impacientou-se: Então o que é que há?
O comandante ripostou: Estamos à espera de que o meu
general saia daí!
Spínola, furioso, voltou à carga: Não saio nada daqui. O
gajo que dispare. Se é bom atirador, não falha o alvo. Vamos lá, depressa.
Jimmy Hoagland, o jornalista, perguntava a Otelo: Mas o homem é doido ou quê?
Ele sabe que o “Americano” só tem 49 dias de instrução acelerada e nunca tinha
visto antes uma espingarda?
O
comandante do batalhão, sem outra saída, deu finalmente voz de fogo e fechou os
olhos. Spínola, ao lado do alvo, não se mexia. O Americano disparou uma,
duas, três… dez vezes.
Após cada um dos dez tiros, o general apontava o impacte
da bala com o pingalim e elogiava o atirador – que não falhou uma única vez.
Toda a gente soprou de alívio quando a série de disparos terminou e Spínola
chamou toda a gente para que se apreciassem os resultados. O Americano passara
no teste – e o general convencera-se de que também passara no teste do
jornalista norte-americano.
Piscando o olho a Otelo, revelou o que lhe ia na
alma: Então o que disse o jornalista disto? Ficou de boca aberta, não? Nunca
tinha visto uma coisa assim.
Otelo retorquiu: Ele já me deu a sua opinião.
- Ah!
Sim? E então?
- Diz que o meu general é doido.
E Otelo rematou assim a narrativa: Spínola, feliz, exultante, ria à gargalhada. Traduzi para Jimmy. Riu também.
E Otelo rematou assim a narrativa: Spínola, feliz, exultante, ria à gargalhada. Traduzi para Jimmy. Riu também.
Veja mais um episódio passado entre estas duas personagens - aqui
Saiba mais sobre o general António de Spínola - aqui
Saiba mais sobre o coronel Otelo Saraiva de Carvalho - aqui
1 comentário:
Sobre o Tenente-Coronel Saraiva de Carvalho elaborei uma pequena reflexão na qual procurei ser objetivo e isento, e que o convido a ler no Mosaicos em Português em https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/07/otelo-o-espinho-que-nem-morte-arrancou.html. Ficarei grato pelo que lá quiser comentar.
Enviar um comentário