quarta-feira, 14 de outubro de 2020

O assassínio da família imperial da Rússia pelos bolcheviques de Lenine (17 de Julho de 1918) - 5.ª Parte

 

CATIVEIRO EM ECATERIMBURGO – O ASSASSÍNIO


A "Casa Ipatiev"
 

Em Ecaterimburgo, os Romanov ficaram instalados numa casa expropriada a Nikolai Ipatiev, engenheiro e mercador abastado, que fora intimado a abandonar a residência, com toda a sua família, no prazo de quarenta e oito horas. Nessa altura, Nicolau e os seus já tinham saído de Tobolsk e viajavam para o novo e derradeiro destino.

Outro aspecto da mesma casa, já com a paliçada.

O edifício, que seria posteriormente designado por “Casa Ipatiev”, possuía dois pisos, um deles parcialmente abaixo do nível do chão. No propósito de aumentar a segurança de tão importantes prisioneiros, as autoridades mandaram erguer uma paliçada em torno da construção, a qual limitava as vistas quer aos residentes quer aos habitantes da cidade que passavam nas proximidades.

Nicolau II e a família em Ecaterimburgo.

Os Romanov perceberam desde o início que os seus destinos tinham acabado de entrar por um declive tão acentuado como ameaçador. Os líderes bolcheviques dos Urais começaram por lhes dizer que eles não teriam perdão, após o que os revistaram e lhes subtraíram os poucos rublos que levavam consigo.

A partir de Moscovo, Yakov Sverdlov (secretário do Comité Central Bolchevique e presidente do Comité Executivo Central do Congresso dos Sovietes), um homem que se entendia às mil maravilhas com Lenine, insistia que os prisioneiros deveriam ser guardados e tratados “com todo o rigor”.

Avdeev, o primeiro comandante que os Romanov encontraram na “Casa Ipatiev”, não hesitou em seguir as instruções à risca, impondo crescentes limitações e constrangimentos aos recém-chegados. Quando Nicolau II tentou esboçar um protesto, Avdeev respondeu-lhe, com rudeza, que se calasse, caso contrário separá-lo-ia da família e levá-lo-ia para trabalhos forçados.

Nicolau II com o filho, Alexei.

O regime na “Casa Ipatiev” endurecia de dia para dia. O número de guardas não parava de crescer, sendo muitos deles recrutados entre os operários das fábricas das redondezas. O número de acompanhantes do ex-czar foi reduzido ao mínimo, e alguns deles foram logo metidos em prisões.

Os membros da família só tinham uma hora por dia para se exercitarem ao ar livre, e, por vezes, nem esse tempo lhes era concedido. Como a comida escasseasse, Avdeev autorizou que as freiras de um convento próximo enviassem um reforço alimentar para os prisioneiros. Mas não se tratava de um acto de generosa condescendência, pois o comandante movia-se por uma razão oculta: quando as iguarias chegavam, ele desviava o melhor para si e para alguns guardas, deixando as sobras para a família imperial.

As provações dos Romanov com este intratável comandante incluíam o terem que o aturar de vez em quando à mesa das refeições, alturas em que ele refinava o comportamento grosseiro.

As condições de vida dos Romanov pioravam sempre. Nicolau andava de botas remendadas e foi proibido de fazer os trabalhos de jardinagem de que tanto gostava. As filhas ajudavam a preparar as refeições na cozinha. E todas elas, tal como a mãe, faziam trabalhos de costura para se manterem ocupadas. De forma geral, a família suportava o cativeiro com estóica resignação.

Nicolau II com três das suas filhas.

Muito religiosos, os Romanov encontravam na sua fé cristã e no profundo amor que sentiam uns pelos outros a melhor forma de enfrentar as crescentes agruras que viviam. Mas as idas à igreja, que tinham sido possíveis em Tobolsk, tornaram-se impossíveis. Os serviços religiosos na “Casa Ipatiev” eram raríssimos, sendo por vezes adiados ou suprimidos sem quaisquer explicações. Certo dia, num desses serviços, Avdeev quis impedir o ex-czar de receber a hóstia, acabando por ceder com grande relutância.

A chefia comunista dos Urais aproveitava todos os pretextos para endurecer a atitude para com os prisioneiros, incluindo a sobrevalorização dos boatos, que se revelariam infundados, acerca de fabulosas conspirações monárquicas para libertar os cativos (o que não quer dizer que os Romanov não acalentassem a secreta esperança de que algo desse género ocorresse).

As autoridades chegaram a enviar-lhes cartas forjadas onde lhes eram propostos planos de libertação. Numa das ocasiões, Nicolau II deixou-se enganar e acreditou. Mas não nutria rancor pelos seus algozes: na resposta, rogou aos pseudo-salvadores que não derramassem sangue entre os guardas da “Casa Ipatiev”.


O nervosismo crescia no seio das autoridades bolcheviques à medida que a guerra civil progredia. Nos Urais havia para cima de 12.000 Guardas Vermelhos, 3.000 dos quais tinham sido destacados para reforçarem a capacidade defensiva de Ecaterimburgo.

A tensão aumentou quando a Legião Checoslovaca se revoltou em Chelyabinsk, povoação situada a 225 km da “Casa Ipatiev”. A Legião era composta por prisioneiros de guerra checos e eslovacos, e o seu plano consistia em unir-se às forças anti-soviéticas que combatiam na guerra civil para derrubar o poder bolchevique. Em pouco tempo, conquistou algumas povoações ao longo da Linha Transiberiana. Omsk, por exemplo, caiu em meados de junho de 1918.

Por outro lado, também nos Urais, ocorreram sublevações operárias contra os bolcheviques devido à deterioração da situação económica e ao terror imposto pela polícia política.

Yakov Yurovski, o chefe da brigada assassina.

Na “Casa Ipatiev”, aproveitando a impotência dos Romanov, verificaram-se alguns roubos, sendo o produto dos mesmos vendido na cidade. O próprio Avdeev foi considerado conivente com os assaltos e, por essa ou por outras razões, as autoridades resolveram destituí-lo do seu posto de comando e nunca mais foi visto por ali.

Para substituir Avdeev foi nomeado o chekista Yakov Yurovski, homem formalmente correcto, mas duro e gélido. Resolvido a transformar o edifício numa espécie de fortaleza-prisão, mostrou-se severo para com a família desde o começo. Convocou guardas novos, incluindo alguns soldados letões da sua confiança. Recusou o pedido de Nicolau II para o deixar limpar o jardim e dificultou a chegada de alimentos do exterior destinados à família imperial. 

Mas, em certos aspectos, e talvez propositadamente, a disciplina deixava muito a desejar: alguns dos guardas escreviam frases obscenas nas paredes da casa ou entoavam canções do mesmo teor com a óbvia intenção de chocar as filhas e a esposa do ex-czar.

Em Moscovo prosseguiam as discussões sobre a família Romanov, e é indesmentível que Lenine e Sverdlov se puseram de acordo quanto à solução definitiva que acabaria por ser adoptada. Eles mantinham contacto frequente com as autoridades bolcheviques dos Urais, com as quais trocavam mensagens, amiúde codificadas, pelo aparelho de Hughes (telégrafo impressor).

Yakov Sverdlov

A 16 de Julho de 1918, Yurovski compareceu a uma reunião com as autoridades bolcheviques dos Urais, durante a qual se falou abertamente da execução próxima da família imperial. Prova de que eles não pensavam agir sem cobertura das autoridades centrais foi o telegrama que remeteram para Moscovo (via Petrogrado), dirigido a Sverdlov com cópia para Lenine.

Na “Casa Ipatiev”, Yurovski e a sua brigada de assassinos ficaram a aguardar luz verde para que o crime pudesse ser praticado. Para isso, alguém teria que lhes comunicar a senha que o autorizaria: limpa-chaminés.

O telegrama dos Urais (Ecaterimburgo) chegou a Moscovo às 21h 22m de 16 de Julho (23h 22m nos Urais). Grande parte dele fora escrito em código (a palavra “execução”, por exemplo, era substituída por “julgamento”).

Moscovo reagiu com celeridade ao telegrama de Ecaterimburgo. Lenine e Sverdlov reuniram-se durante uns instantes, após o que, já tomada a decisão, um guarda-costas do presidente do Sovnarkom levou uma mensagem até ao edifício central de telégrafo. O telegrama fatal foi expedido para Ecaterimburgo (via Petrogrado e Perm).

Na “Casa Ipatiev”, Yurovski continuava à espera com os homens que escolhera para a terrível missão. O comandante explicara-lhes o que iria suceder em breve, distribuiu revólveres a todos e indicou a cada um sobre quem deveria disparar entre os onze alvos que teriam pela frente.

Yurovski enfrentou um contratempo de última hora, quando alguns dos homens – soldados letões – recusaram participar na missão quando souberam que teriam de matar uma criança e mulheres indefesas. O comandante dispensou-os e procedeu à sua rápida substituição.

A descida para a cave da "Casa Ipatiev".

A tensão aumentava entre os assassinos. O dia 16 chegou ao fim sem que recebessem a ordem final. Após horas de espera, já na madrugada do dia 17, um mensageiro chegou à “Casa Ipatiev” com a ansiada palavra de código: limpa-chaminés. Era uma hora e meia da madrugada do dia 17 e não havia salvação possível para os Romanov e seus servidores. Todavia, alheios ao que se tramava, eles dormiam tranquilamente.

Os onze condenados foram despertados sob pretexto de que havia graves distúrbios em Ecaterimburgo e que eles teriam de ser transportados para lugar mais seguro. Ordenaram-lhes que se vestissem e descessem para uma dependência da cave normalmente utilizada como adega.

Yurovski, que parecia feito de gelo, não apressou ninguém, pois desejava manter um ambiente calmo. Era um homem formatado para matar, sem sentimentos nem escrúpulos que pudessem intrometer-se entre ele e as ordens recebidas.

A família imperial e os quatro servidores puderam, portanto, lavar-se e vestir-se com algum vagar. Às duas horas da manhã, todos desceram para a cave. O ex-czar teve que levar o filho, Alexei, nos braços, pois a criança voltara a sentir dificuldades de locomoção.

A espera na cave.

Yurovski ordenou ao grupo que esperasse ali pela chegada do camião que os transportaria para um sítio seguro. Nicolau pediu-lhe cadeiras para que a ex-czarina e Alexei se pudessem sentar. Yurovski condescendeu e mandou buscar duas cadeiras. Os restantes nove permaneceram de pé.

Apesar da inquietação que sentiam, a nenhum daqueles onze seres ocorreu que os homens perfilados diante deles - e que os olhavam com aparente impassibilidade - eram o seu pelotão de fuzilamento e os seus carrascos.

Nenhum deles suspeitava que as suas vidas durariam, apenas, mais alguns segundos (reveja a identificação das vítimas aqui)

Yurovski anuncia a execução aos prisioneiros.

De repente, perante a estupefacção e o pavor dos onze condenados, Yurovski puxou de um papel e bradou que as autoridades revolucionárias haviam ordenado a execução de todos eles.

A ex-czarina e uma das filhas procuraram esboçar o sinal da cruz. Nicolau, tão surpreendido como os outros, virou-se para Yurovski e tentou dizer alguma coisa (testemunhos presenciais garantem que as suas últimas palavras foram: O quê? O quê?).

Mas não houve tempo para mais nada que as vítimas pudessem ter querido fazer.

O crime dos bolcheviques.

Yurovski, dando cumprimento às ordens dos superiores, gritou: Fogo!

Na confusão que se seguiu, por entre a densa fumarada dos disparos, a adega transformou-se num matadouro. Algumas das vítimas pereceram instantaneamente, como terá sido o caso de Nicolau II (abatido, ao que parece, pelo comandante da brigada assassina).

Outros dos visados, como o pequeno Alexei e várias das suas irmãs, sobreviveram por uns instantes, ainda que feridos, mas acabaram por morrer atingidos por novos disparos ou apunhalados até não darem sinais de vida. Descobriu-se, mais tarde, que as primeiras balas tinham embatido em pequenos objectos valiosos que – na expectativa da viagem anunciada – eles tinham ocultado nas roupas.

Yurovski ordenou que as paredes e o soalho da adega fossem lavados, procurando-se apagar tanto quanto possível os vestígios do crime. Mas as paredes, posteriormente fotografadas, apresentavam sinais aterradores do que ali se havia passado.

Estado em que ficaram as paredes da cave após os disparos.

Os onze cadáveres foram atirados para um camião e levados de Ecaterimburgo. Empilharam-nos numa floresta dos arredores e, após serem regados com gasolina, foram pasto do fogo. Arrastaram então os despojos para o poço de uma mina abandonada e ensoparam-nos em ácido.

No dia seguinte, e porque achassem pouco fundo o poço da mina, os assassinos regressaram para mudar o que restava dos corpos para outro lugar, a cerca de 12 km de Ecaterimburgo. Porém, o camião que transportava os despojos avariou no caminho e as onze vítimas acabaram por ser enterradas perto da estrada por onde seguiam.

Nove dos corpos ficaram numa vala; Alexei e uma das suas irmãs (presumivelmente Maria) foram sepultados a cerca de 15 metros dos outros, no que terá sido uma tentativa de dificultar identificações numa eventual descoberta dos corpos.

E foi assim que desapareceu da cena política russa, por mais de sete décadas, a última família imperial. De Ecaterimburgo expediu-se um telegrama informando que toda a família tivera o mesmo destino do seu líder (o ex-czar).

A 23 de Julho de 1918, o jornal regional do Partido Bolchevique anunciava, apenas, a morte de Nicolau. Começava desse modo a cadeia de falsidades e distorções que perduraria durante décadas.

Lenine, presidente do Sovnarkom.

A ideia, posteriormente disseminada, de que, na liquidação dos Romanov, os líderes dos Urais procederam com completa autonomia relativamente a Moscovo não tem qualquer fundamento sério: nem Lenine nem Sverdlov estavam dispostos a consentir que eles pudessem agir livremente em assunto tão delicado.

As histórias que foram posteriormente divulgadas incorporam o tecido de mentiras, omissões e pistas falsas que visavam essencialmente inocentar os líderes bolcheviques em Moscovo e, particularmente, Lenine. Este era extremamente cuidadoso na troca de mensagens com os bolcheviques regionais, recorrendo muitas vezes a linguagem codificada e ordenando a destruição das comunicações emitidas.

Para além das memórias que Trotsky escreveu sobre o “caso Romanov” (que denunciam claramente a responsabilidade dos líderes centrais – Lenine e Sverdlov), existem os indícios que este último foi deixando pelo caminho e que apontavam, claramente, para aquilo que ele sabia estar prestes a acontecer.

Antes do crime, numa reunião com dirigentes bolcheviques em Moscovo, quando foi colocado perante a hipótese de a família imperial ser executada pelas autoridades dos Urais, Sverdlov respondeu que isso não lhe diria directamente respeito; mas, se tivesse que ser, não nos iríamos opor.

Ao mesmo tempo, contribuindo para o adensar da rede de camuflagem da verdade, os líderes centrais continuavam a falar de um posterior e fantasioso julgamento de Nicolau II em Moscovo.

A ideia de que a execução dos Romanov poderá ter sido precipitada pela aproximação a Ecaterimburgo das tropas anti-bolcheviques – e pelo correspondente receio de que a família caísse em poder dos atacantes - não tem pés nem cabeça para qualquer observador isento.

Se essa tivesse sido a intenção de Moscovo – e, mais concretamente, a de Lenine – haveria mais do que tempo para que os sete membros da família e os seus quatro acompanhantes fossem retirados da casa-prisão e transportados para ocidente sem problemas de maior.

Com efeito, a execução teve lugar às primeiras horas de 17 de Julho. Nos dias seguintes, as lideranças dos Urais e os Guardas Vermelhos puderam escapar-se da cidade, fugindo ao inimigo com toda a tranquilidade.

A 22 de Julho, cinco dias após a madrugada fatal, havia ainda bolcheviques a escapar-se dali, muitos deles acompanhados por esposas e filhos. Mais: durante esse espaço de tempo, os líderes dos Urais ordenaram a evacuação para ocidente de inúmeros presos políticos que mantinham nas cadeias da cidade.

A Legião Checoslovaca só deu entrada em Ecaterimburgo no dia 25 de Julho de 1918 (oito dias após o assassínio!). Teria havido, portanto, tempo de sobra para poupar as vidas dos Romanov e dos seus companheiros – se essa fosse a vontade de Lenine e, em menor grau, a de Sverdlov.

Mas Nicolau II e os seus familiares tinham ficado irremediavelmente condenados à morte, sem qualquer julgamento, desde que a revolução de Outubro de 1917 colocara Lenine e a sua gente no poder.


(Continua em 17 de Outubro de 2020)

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