sábado, 10 de outubro de 2020

O assassínio da família imperial da Rússia pelos bolcheviques de Lenine (17 de Julho de 1918) - 4.ª Parte

Casa do Governador (mais tarde, "Casa da Liberdade") em Tobolsk.


 Em Tobolsk, na Sibéria Ocidental, onde permaneceram confinados na antiga casa do governador da província, os elementos da família imperial russa e os seus servidores ficaram sob a vigilância de um destacamento que, entre oficiais e soldados, contava com um efectivo de cerca de três centenas e meia de homens.

A casa estava longe de ser um palácio, pelo que não oferecia comodidades comparáveis às do Palácio de Alexandre, em Tsarskoe Selo. Quando a família chegou a Tobolsk, ela nem sequer havia sido preparada para recebê-la, pelo que os Romanov tiveram de esperar, a bordo do navio que os tinha transportado até ali, que se reunisse um mínimo de condições de habitabilidade.

Mais tarde foi concedida autorização para que se trouxessem de Tsarskoe Selo algumas peças de mobiliário, tapeçarias e tapetes que contribuíram para o conforto dos moradores.

Vasili Pankratov, em trajes siberianos.

Kerensky, o presidente do Governo Provisório, nomeou um comissário para supervisionar a guarda e a gestão da casa. Tratava-se de Vasili Pankratov, em tempos condenado pela justiça czarista por um crime de homicídio. Após longo período de prisão partira para um exílio na Sibéria, terra a que retornava agora para vigiar o ex-czar, o homem a quem ele se opusera durante grande parte da sua vida.

Ao contrário do que seria expectável, Pankratov não se mostrou agressivo nem desrespeitoso para com os Romanov, conseguindo mesmo ser cordial quando na presença de Nicolau II.

Ele achava, e proclamou-o em diversas ocasiões, que nem os guardas nem ele próprio deveriam assumir-se como juízes dos prisioneiros; e pensava que só a futura Assembleia Constituinte poderia tomar uma decisão definitiva acerca deles.

Nicolau II e o seu filho Alexei serrando lenha.

Tal como tinham feito em Tsarskoe Selo, os Romanov procuraram adaptar-se da melhor forma possível à nova situação. Nicolau e Alexandra tentavam manter as aparências de uma vida familiar normal, ainda que fosse muito difícil abstraírem-se da triste realidade.

Embora com limitações de tempo, podiam sair para o jardim da casa e entreter-se com diversas actividades.  A leitura e o corte de lenha para as lareiras continuaram a ser os principais passatempos de Nicolau.

À noite faziam-se leituras e, em certas ocasiões, representavam-se pequenas peças (o ex-czar desempenhou o papel principal numa peça de Anton Chekhov, “O Urso”).

Duas das filhas de Nicolau e Alexandra trabalhando na horta.

Nicolau e as filhas, às vezes acompanhados pelo pequeno Alexei, dedicavam-se a tratar do jardim e de uma pequena horta. Abriam carreiros, limpavam a neve dos caminhos, cuidavam de perus e galinhas.

O comissário Pankratov confessou posteriormente ter ficado bastante surpreendido e impressionado com a exuberante disponibilidade da família para trabalhos que exigiam grande esforço físico, e, sobretudo, com a humildade e a resignação que todos exibiam em tais tarefas.

Nos intervalos destas, alguns elementos da família sentavam-se na varanda exterior ou nos parapeitos das janelas para observarem o movimento na rua.

Lenine, presidente do Sovnarkom, falando às massas.

Tudo indica que os Romanov, confinados em Tobolsk e com acesso limitado às notícias do mundo, não tinham percepção da importância dos acontecimentos que se iam desenrolando na capital.

No dia em que os bolcheviques de Lenine se assenhorearam do poder (25 de Outubro - ou 7 de Novembro - de 1917), Kerensky, presidente do Governo Provisório, teve de fugir do Palácio de Inverno deixando o caminho livre aos novos senhores da Rússia.

Como o futuro próximo demonstraria, este episódio assumiria decisiva e fatal influência sobre o destino da família imperial. Esta, no entanto, continuou a seguir as suas rotinas de cativeiro como se nada de fundamental tivesse ocorrido.

Nicolau II e Alexei tratando de galinhas e perus.

Nesse dia do triunfo de Lenine, Nicolau serrou lenha como de costume e foi depois assistido pelo dentista. No seu diário referiu-se ao tempo e ao frio, tal como fez Alexandra.

Duas semanas mais tarde limitou-se a escrever que nevara bastante e que as filhas tinham andado de trenó. Mas acrescentou uma nota elucidativa: Não lemos jornais de Petrogrado há muito tempo.

Quando teve finalmente acesso a alguma imprensa com o relato dos acontecimentos, sentiu-se muito abalado – e com razão. Se o Governo Provisório nem sempre agira sem reparos para com a família, a verdade é que Kerensky se preocupara seriamente com a sua segurança e fizera os possíveis para lhe amenizar o cativeiro.

Com Lenine no poder, tudo – ou quase tudo – mudara. Os bolcheviques estavam na disposição de agravar as condições de detenção dos prisioneiros na “Casa do Governador” (que passou a ser designada por “Casa da Liberdade”) e o seu destino era agora uma incógnita sombria e potencialmente perigosa.

Pausa nos trabalhos agrícolas (Maria, Olga, Anastasia e Tatiana).

Em Janeiro de 1918, o poder absoluto alcançado pelos bolcheviques serviu, entre outras coisas, para dissolver a Assembleia Constituinte recentemente constituída e para a assunção de medidas drásticas em toda a Rússia.

Em Tobolsk, os Romanov sentiram que as condições de vida pioravam a cada dia. O ex-czar recebeu um cartão de racionamento para poder aceder a produtos básicos, como alimentos e sabão.

De qualquer modo, nunca faltou nada à mesa da família: muitos habitantes de Tobolsk enviavam-lhes iguarias diversas, acompanhadas de votos de felicidades. E, quando alguns dos membros da família apareciam às janelas ou na varanda, eram esses mesmos habitantes que se lhes dirigiam com expressões de simpatia.

Nicolau II limpando a neve.

Pankratov deve ter fechado os olhos a algumas destas ocorrências. Nomeado comissário por Kerensky, presidente do entretanto extinto Governo Provisório, ele sentia que a missão de que fora incumbido já não fazia sentido e apresentou a sua demissão ao comité de soldados.

Quando se despediu de Nicolau, ambos sabiam que as circunstâncias, daí em diante, só poderiam tornar-se mais difíceis para os Romanov. E Pankratov, manifestamente, não queria ter nada a ver com qualquer coisa de “desagradável” - ou, até, de “irreparável” - que lhes pudesse acontecer.

Nicolau II e Alexandra na varanda da Casa do Governador, em Tobolsk.

O Sovnarkom (autoridade central, presidida por Lenine) determinou um regime mais severo na “Casa da Liberdade”. Começou por entregar a gestão da casa ao Soviete Regional da Sibéria Ocidental (sedeado em Omsk), que logo mandou para Tobolsk 250 Guardas Vermelhos.

Os soldados já vinham actuando com animosidade em relação aos Romanov e, com isto, as coisas pioraram. Muitos dos acompanhantes da família imperial foram expulsos da “Casa da Liberdade”.

As visitas à igreja próxima – que já eram raras – foram totalmente proibidas. A manteiga e o café passaram a ser considerados luxos. Nicolau, que perdera, obviamente, o acesso às contas bancárias pessoais, teve de despedir parte dos servidores e de reduzir os vencimentos dos poucos que restaram.

O ex-czar, desprovido de fundos, teve de recorrer ao crédito para mandar adquirir bens de primeira necessidade. A situação só não se deteriorou ainda mais porque Nicolau recebeu, em segredo, algum dinheiro dos seus simpatizantes no exterior.

As quatro irmãs observando o movimento na rua
(Anastasia, Tatiana, Olga e Maria).

Em princípios de Março de 1918, Lenine fez uma paz separada com os alemães (tratado de Brest-Litovsk). A situação militar agravara-se de tal forma que obrigara a deslocar a capital – de Petrogrado para Moscovo.

A paz foi conseguida à custa de enormes perdas territoriais por parte da Rússia, mas Lenine considerara que aquela era a única forma de salvar a “sua” revolução.

Nicolau II e os cinco filhos no telhado da Casa do Governador.

Nicolau ficou indignado quando tomou conhecimento disto. Tanto ele como Alexandra consideraram Lenine um “traidor”, por ter aceitado fazer uma paz tão vergonhosa e tão prejudicial para a Rússia.

O sucedido não deixava de ser irónico, porquanto, no princípio do seu cativeiro, o casal fora alvo de uma investigação por se suspeitar que eles, quando no poder, tinham tentado a paz separada com a Alemanha. A investigação provara a falsidade da suspeita.

Agora, a ex-czarina Alexandra (que era, por nascimento, uma princesa alemã) manifestava-se no cativeiro contra a “traição” dos bolcheviques e do seu líder, escrevendo: Que tempos são estes? É uma paz humilhante. Estar sob o jugo alemão é pior do que estar sob o jugo tártaro.

Com isto ela assumia, como sempre fizera, o sentimento de honra da sua pátria adoptiva: a Rússia.

Nicolau II com três das suas filhas.

Entretanto, no Sovnarkom discutia-se a situação dos Romanov. Falava-se em trazer o ex-czar para a nova capital, Moscovo, a fim de o submeter a julgamento. Mas o futuro dos prisioneiros, na sua globalidade, continuava por definir.

Então, resolveu-se atribuir a autoridade sobre a “Casa da Liberdade” ao Soviete Regional dos Urais, sedeado em Ecaterimburgo (subtraindo-a, portanto, ao Soviete Regional da Sibéria Ocidental, sedeado em Omsk).

Deve salientar-se que, em torno de Tobolsk, os sovietes de Omsk e Ecaterimburgo se assumiam como as duas grandes praças-fortes do bolchevismo. Para ambas, Tobolsk era “território inimigo”: não só albergava os Romanov, como o seu soviete continuava a ser liderado por mencheviques e por revolucionários-socialistas. Acontece, porém, que o Soviete de Ecaterimburgo se orgulhava de ser (e era, de facto) muito mais “revolucionário” (ou seja, mais radical) do que o de Omsk. A pacífica Tobolsk não tardaria a percebê-lo e a ceder ao controlo bolchevique.

Tatiana com o pai.

Os Guardas Vermelhos enviados de Omsk, e depois de Tyumen, já tinham causado distúrbios nas ruas de Tobolsk, chegando ao ponto de ameaçar a “Casa da Liberdade”. O Soviete de Ecaterimburgo contribuiu com mais 400 guardas, o que em nada facilitou a pacificação do ambiente.

Finalmente, as autoridades centrais, em Moscovo, tomaram a decisão de nomear um novo comissário bolchevique para a “Casa da Liberdade” (de seu nome, Vasili Yakovlev) e encarregaram-no de dirigir a transferência da antiga família imperial para um novo local de cativeiro: exactamente Ecaterimburgo, onde ficariam sob a autoridade do Soviete Regional dos Urais (e não já a do Soviete Regional da Sibéria Ocidental, de Omsk).

Vasili Yakovlev, que dirigiu a transferência da família imperial para Ecaterimburgo.

Yakovlev chegou a Tobolsk, com um contingente de mais 200 guardas, em 22 de Abril de 1918. Deixou logo bem claro que as autoridades de Moscovo o tinham nomeado para ter o exclusivo de lidar com os Romanov. Depois foi apresentar-se aos prisioneiros. Nicolau, como era seu timbre, mostrou-se simpático e afável; Yakovlev foi formalmente cortês e falou com educação. A família, embora apreensiva, concluiu que ele não era “um rufião”.

A 25 de Abril de 1918, Yakovlev informou os prisioneiros de que, de acordo com as ordens de Moscovo, eles teriam de ser transferidos de Tobolsk sem demora. Mas não lhes indicou qual seria o destino.

Nessa altura, o pequeno Alexei estava doente e não podia viajar. Resolveu-se que ele ficaria em Tobolsk até recuperar, ficando acompanhado por três das suas irmãs – Olga, Tatiana e Anastasia. Viajariam os quatro assim que ele melhorasse.

Nicolau partiria à frente, com a ex-czarina e com a filha Maria (seguiriam ainda o médico e os poucos servidores que restavam).

Alexei com a sua mãe, a ex-czarina Alexandra.

A 30 de Abril de 1918, após uma viagem movimentada - primeiro em carroças puxadas por cavalos, e depois de comboio, em que andaram para cima e para baixo na Linha Transiberiana (Yakovlev justificou-se com razões de segurança) -, o comissário de Moscovo entregou em Ecaterimburgo os três primeiros membros da família imperial e seus acompanhantes.

Finda a missão, exigiu um recibo comprovativo de que a “encomenda” chegara sã e salva ao destino. A autoridade de Yakovlev terminava ali e ele partiu para Moscovo.

Como havia sido previsto, o pequeno Alexei e as irmãs – Olga, Tatiana e Anastasia – viajaram logo que ele sentiu melhoras. Chegaram a Ecaterimburgo, reunindo-se aos pais e a Maria, no dia 23 de Maio de 1918.

O reencontro foi alegre. A nenhum deles ocorreu a menor suspeita de que a morte se aproximava a passos largos e irreversíveis. Tinham pela frente, todos eles, menos de dois meses de vida.


(Continua em 14 de Outubro de 2020)

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