sexta-feira, 24 de abril de 2020

"As Raparigas Lá de Casa"

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...ou de como, pela mão de um grande poeta,
um homem regressa,
por entre mil lembranças e gratidões,
aos dias longínquos de uma infância feliz...

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AS RAPARIGAS LÁ DE CASA



Como eu amei as raparigas lá de casa
discretas fabricantes da penumbra

guardavam o meu sono
como se guardassem o meu sonho

repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos

povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde saíam
deixando sempre um rastro de hortelã

traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco
da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar

(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar
o odor doce e materno
das manadas quando passam)

aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava
a inquieta maresia dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos,

no outono penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas
como as folhas na primavera

não me lembro da cor dos olhos
quando olhava os olhos
das raparigas lá de casa

mas sei que era neles que se acendia o sol
ou se agitava a superfície dos lagos dos jardins com lagos
a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa,

que tinham namorados
e com eles traíam
a nossa indefinível cumplicidade

eu perdoava sempre
e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa

porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau
de sua inexplicável bondade

o vício da virtude
da sua imensa ternura

da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor
pelas raparigas lá de casa

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Poema de Emanuel Félix.
Nasceu em Angra do Heroísmo, Açores, Portugal, em 1936.
Faleceu na mesma cidade em 2004.
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