quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Simone Veil e o campo de concentração de Auschwitz...



"Fui a Auschwitz pela primeira vez a 27 de Janeiro de 1994, 49 anos depois da libertação do campo.
Entre os numerosos membros de parlamentos nacionais, governos e Parlamento Europeu que participaram na viagem, encontrava-se Simone Veil, à época ministra de Estado de França. Era a primeira vez que esta  sobrevivente de Auschwitz-Birkenau voltava ao local para onde fora deportada pelos nazis a 13 de Abril de 1944.
Simone Jacob - era este o seu apelido de solteira - chegou a Auschwitz com 16 anos, acompanhada pela mãe Yvonne e pela irmã Madeleine. A família fora apanhada pela Gestapo em Nice e levada para o campo de Drancy, perto de Paris, um dos três maiores campos da Europa de reagrupamento de prisioneiros, antes de serem deportados pelos nazis.

O pai e o irmão, Jean, foram enviados para o Forte IX, em Kaunas, na Lituânia, de onde nunca regressaram, e Simone, a mãe e a irmã para Auschwitz-Birkenau, onde chegaram a 15 de Abril à noite.
Seguindo o conselho de um prisioneiro, na selecção inicial, Simone afirmou ter 18 anos, de forma a evitar, ou pelo menos adiar, as câmaras de gás. O número da matrícula tatuado no seu braço foi 78651, e o trabalho a que foi forçada consistia em descarregar pedras de camiões, cavar trincheiras e aplanar o solo.


A jovem Simone Veil (em solteira Simone Jacob)

Meses mais tarde, perante a aproximação do Exército soviético, os alemães obrigam os prisioneiros a abandonar Auschwitz, levando-os, no que ficou conhecido como Marchas da Morte, até ao campo de Bergen-Belsen, na Alemanha. A sobrelotação deste campo, a falta de higiene e de cuidados médicos provocam uma terrível epidemia de tifo, que contamina a mãe e a irmã de Simone: a primeira morre a 15 de Março de 1945, e a irmã salva-se por um triz devido à chegada das tropas britânicas a 15 de Abril de 1945.
Simone sobrevive e chega a França, a 23 de Maio, com a irmã Madeleine. A ela junta-se a outra irmã, Denise, que entrara aos 19 anos na Resistência, tendo sido deportada para o campo de Ravensbrück.
São as únicas sobreviventes de uma família que antes da guerra tinha seis pessoas.



Nessa manhã gélida de 27 de Janeiro de 1994, Simone Veil regressava pela primeira vez ao campo onde enterrara a adolescência. O seu rosto fechado não revelava emoção nem tristeza. Pressionada pelos jornalistas, manteve-se em silêncio a maior parte do dia. Mas ao final da tarde, numa cerimónia solene e muito emotiva junto do Memorial Internacional de Auschwitz-Birkenau, a tensão daquela jornada acabou por explodir, após as palavras do bispo polaco dissertando sobre os holocaustos que aconteciam pelo mundo fora.

Era quase noite, o frio era intenso e estávamos perto dos antigos crematórios e câmaras de gás. Simone Veil não se conteve: Holocaustos? Como pode falar de "holocaustos", no abstracto e no plural, neste dia e neste local, onde foram assassinadas mais de um milhão de pessoas, entre as quais centenas de milhares de crianças?
Não me lembro da resposta, se a houve. Mas ao longo destes 26 anos, e apesar de ter voltado várias vezes a Auschwitz e visitado muitos outros campos de concentração e extermínio, nunca me esqueci daquela tarde no maior e mais sinistro cemitério do mundo, em que a ministra de Estado despiu o manto oficial e falou por todos aqueles que nunca conheceram uma sepultura.




Auschwitz é considerado o símbolo máximo do Holocausto e da política genocida de Hitler. Sobretudo a partir de 1942, torna-se epicentro dos crimes do nazismo, um local único onde se conjuga o mais vasto campo de deportação do universo concentracionário nazi e o maior centro de extermínio da história do III Reich. Por tudo isso, tornou-se sinónimo do mal absoluto.
Foi aí que teve lugar a primeira experiência de assassínio em massa, numa câmara de gás, em Setembro de 1941, com prisioneiros de guerra soviéticos; foi aí que judeus e ciganos serviram de cobaias às diabólicas experiências levadas a cabo por médicos e enfermeiros nazis; foi aí que mais de um milhão de seres humanos de 15 países europeus foram gaseados, e que mais de 200 mil homens, mulheres e crianças morreram de fome, frio e doença, exaustão e brutalidade, ou simplesmente solidão e desesperança absoluta...

Com mais de um milhão de mortos, Auschwitz simboliza numa só palavra e num só espaço toda a criminalidade do regime nazi. E também, mais do que qualquer outro, é o fruto monstruoso do ódio mortal de Hitler contra o seu principal alvo de sempre: o povo judeu.
Outros campos, como Treblinka ou Sobibor, partilharam com Birkenau a imensa e inédita capacidade destrutiva. Mas de todo o universo concentracionário nazi, é decerto Auschwitz que melhor espelha a política racial do Estado de Hitler e Himmler e onde o processo - concentração, extorsão, trabalho escravo e extermínio - foi de longe o mais "perfeito".



Ao longo da sua história, a Humanidade conheceu guerras e massacres atrozes. Mas o Holocausto surge numa sociedade moderna, culta e sofisticada, num mundo em que era suposto a barbárie ter sido ultrapassada. Ora não só isso não aconteceu, como foram os próprios instrumentos da modernidade que permitiram a catástrofe com a dimensão e as características que assumiu.
É, pois, à luz desse contexto histórico e civilizacional que tem de ser feita a reflexão sobre o Holocausto. Julgado à luz do contexto da Europa do século XX e da sua cultura, o que o genocídio nazi nos revela é que vivemos num mundo que contém em si a possibilidade de 'Auschwitz'. A história nunca se repete da mesma maneira, porque o contexto que a determina é irrepetível. Mas a barbárie nazi aconteceu não num parêntesis histórico, mas como virtualidade da nossa civilização.

Na verdade, ignoramos a principal "lição" de Auschwitz: a de como podem ser destrutivas as guerras nas nossas sociedades evoluídas do ponto de vista científico, tecnológico e industrial.
O Holocausto - escreve Geneviève Decrop - demonstrou de forma inédita que os maiores massacres não são concebidos no campo de batalha, mas nos bastidores das administrações públicas e privadas, ou, como Kafka terá dito, que os grilhões da Humanidade torturada são em papel de ministério.


A história do Holocausto, como a de outros acontecimentos históricos, nunca é definitiva. Escrita no presente, altera constantemente a abordagem do passado. Mas, apesar de todos os trágicos acontecimentos destes últimos 75 anos, o Holocausto continua a ser inédito na história humana.
Se nos quisermos compreender como pessoas e europeus, o conhecimento desse momento negro do século XX é indispensável.
Como referiu Imre Kertész no discurso de atribuição do Prémio Nobel, em 2002:

O problema de Auschwitz não é saber se devemos manter a sua memória ou metê-la numa gaveta da História. O verdadeiro problema de Auschwitz é a sua própria existência, e, mesmo com a melhor vontade do mundo, ou com a pior, nada podemos fazer para mudar isso." (*)
 
 
A Lista de Schindler
(Tema musical)

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(*) - Artigo de Esther Mucznik no jornal Expresso (Lisboa, Portugal) de 1 de Fevereiro de 2020, pág.3.
Título: Auschwitz, um passado que não passa.
Nota: Esther Mucznik é a fundadora e presidente da Associação Memória e Ensino do Holocausto - Memoshoá.

(Ilustrações da responsabilidade da Torre da História Ibérica)

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