terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Aberturas de Grandes Livros - "O Crime do Padre Amaro" (Eça de Queiroz - Portugal)

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"Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria que o pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia.
O pároco era um homem sanguíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica — que o detestava — costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado:
Lá vai a jibóia esmoer. Um dia estoura!

Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe — à hora em que defronte, na casa do doutor Godinho, que fazia anos, se polcava com alarido. Ninguém o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca, cabelos nos ouvidos, palavras muito rudes.

Nunca fora querido das devotas; arrotava no confessionário, e, tendo vivido sempre em freguesias da aldeia ou da serra, não compreendia certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso, logo ao princípio, quase todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmão, tão cheio de lábia!
E quando as beatas, que lhe eram fiéis, lhe iam falar de escrúpulos de visões, José Miguéis escandalizava-as, rosnando:
Ora histórias, santinha! Peça juízo a Deus! Mais miolo na bola!
As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no:
Coma-lhe e beba-lhe - costumava gritar -, coma-lhe e beba-lhe, criatura!

Era “miguelista” — e os partidos liberais, as suas opiniões, os seus jornais enchiam-no duma cólera irracional:
Cacete ! Cacete ! - exclamava, meneando o seu enorme guarda-sol vermelho.

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Nos últimos anos tomara hábitos sedentários e vivia isolado — com uma criada velha e um cão, o Joli. O seu único amigo era o chantre Valadares, que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois anos, o seu reumatismo, numa quinta do Alto Minho.
O pároco tinha um grande respeito pelo chantre, homem seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovídio — que falava fazendo sempre boquinhas, e com alusões mitológicas.

O chantre estimava-o. Chamava-lhe Frei Hércules.
— "Hércules" pela força — explicava sorrindo, "Frei" pela gula.
No seu enterro ele mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava oferecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa de ouro, disse aos outros cónegos, baixinho, ao deixar-lhe cair sobre o caixão, segundo o ritual, o primeiro torrão de terra:
É a última pitada que lhe dou!

Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o cónego Campos contou-a à noite ao chá em casa do deputado Novais; foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre, e afirmou-se com respeito — que sua excelência tinha muita pilhéria!

Dias depois do enterro apareceu, errando pela Praça, o cão do pároco, o Joli.
A criada entrara com sezões no hospital; a casa fora fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portais. Era um bicho pequeno, extremamente gordo, — que tinha vagas semelhanças com o pároco.
Com o hábito das batinas, ávido dum dono, apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo. Mas nenhum queria o infeliz Joli ; enxotavam-no com as ponteiras dos guarda-sóis; o cão, repelido como um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas.
Uma manhã apareceu morto ao pé da Misericórdia; a carroça do estrume levou-o e, como ninguém tornou a ver o cão, na Praça, o pároco José Miguéis foi definitivamente esquecido.



Dois meses depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro pároco. Dizia-se que era um homem muito novo, saído apenas do seminário.
O seu nome era Amaro Vieira. Atribuía-se a sua escolha a influências políticas, e o jornal de Leiria, A Voz do Distrito, que estava na oposição, falou com amargura, citando o Gólgota, no favoritismo da corte e na reacção clerical.
Alguns padres tinham-se escandalizado com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor chantre:
- Não, não, lá que há favor, há; e que o homem tem padrinhos, tem - disse o chantre. - A mim quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia [Brito Correia era então ministro da Justiça]. Até me diz na carta que o pároco é um belo rapagão. De sorte que - acrescentou sorrindo de satisfação - depois de "Frei Hércules" vamos ter "Frei Apolo".

Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o pároco novo: era o cónego Dias, que fora, nos primeiros anos do seminário, seu mestre de Moral. No seu tempo - dizia o cónego - o pároco era um rapaz franzino, acanhado, cheio de espinhas carnais:
- Parece que o estou a ver com a batina muito coçada e cara de quem tem lombrigas!... De resto, bom rapaz. E espertote...
O cónego Dias era muito conhecido em Leiria. Ultimamente engordara, o ventre saliente enchia-lhe a batina; e a sua cabecinha grisalha, as olheiras papudas, o beiço espesso - faziam lembrar velhas anedotas de frades lascivos e glutões.
O tio Patrício, o Antigo, negociante da Praça, muito liberal, e que, quando passava pelos padres, rosnava como um velho cão de fila, dizia às vezes ao vê-lo atravessar a Praça, pesado, ruminando a digestão, encostado ao guarda-chuva: Que maroto! Parece mesmo D. João VI!




O cónego Dias vivia só com uma irmã velha, a snr.ª D. Josefa Dias, e uma criada, que todos conheciam também em Leiria, sempre na rua, entrouxada num xaile tingido de negro, e arrastando pesadamente as suas chinelas de ourelo. O cónego passava por ser rico; trazia ao pé de Leiria propriedades arrendadas, dava jantares com peru, e tinha reputação o seu vinho duque de 1815. Mas o facto saliente da sua vida - o facto comentado e murmurado - era a sua antiga amizade com a snr.ª Augusta Caminha, a quem chamavam a S. Joaneira, por ser natural de S. João da Foz.
A S. Joaneira morava na rua da Misericórdia, e recebia hóspedes. Tinha uma filha, a Ameliazinha, rapariga de vinte e três anos, bonita, forte, muito desejada.

O cónego Dias mostrara um grande contentamento com a nomeação de Amaro Vieira. Na botica do Carlos, na Praça e na sacristia da Sé exaltou os seus bons estudos no seminário, a sua prudência de costumes, a sua obediência. Gabava-lhe mesmo a voz: "um timbre que é um regalo":
- Para um bocado de sentimento nos sermões da Semana Santa está a calhar!
Predizia-lhe com ênfase um destino feliz, uma conezia decerto, talvez a glória dum bispado! E um dia, enfim, mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé, criatura servil e calada, uma carta de Lisboa que recebera de Amaro Vieira.
Era uma tarde de Agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova. Andava então a construir-se a estrada da Figueira: o velho passadiço de pau sobre a ribeira do Lis tinha sido destruído, já se passava sobre a Ponte Nova, muito gabada, com os seus dois largos arcos de pedra, fortes e atarracados (…).


 (…) Ali, caminhando devagar, falando baixo, o cónego Dias consultava o coadjutor sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre uma ideia que ela lhe dera, que lhe parecia de mestre! De mestre!
Amaro pedia-lhe com urgência que lhe arranjasse uma casa de aluguer, barata, bem situada, e se fosse possível, mobilada; falava sobretudo de quartos numa casa de hóspedes respeitável:
Bem vê o meu caro Padre-Mestre - dizia Amaro - que era isto que verdadeiramente me convinha; eu não quero luxos, está claro: um quarto e uma saleta seria o bastante. O que é necessário é que a casa seja respeitável, sossegada, central; que a patroa tenha bom génio e que não peça mundos e fundos; deixo tudo isto à sua prudência e capacidade, e creia que todos estes favores não cairão em terreno ingrato. Sobretudo que a patroa seja pessoa acomodada e de boa língua.

- Ora a minha ideia, amigo Mendes, é esta: metê-lo em casa da S. Joaneira! - resumiu o cónego com grande contentamento. - É rica ideia, hein?
- Soberba ideia! - disse o coadjutor com a sua voz servil.
- Ela tem o quarto de baixo, a saleta pegada e o outro quarto, que pode servir de escritório. Tem boa mobília, boas roupas...
- Ricas roupas - disse o coadjutor com respeito.
O cónego continuou:
- É um belo negócio para a S. Joaneira: dando os quartos, roupa, comida, criada, pode muito bem pedir os seis tostões por dia. E depois sempre tem o pároco de casa.
- Por causa da Ameliazinha é que eu não sei - considerou timidamente o coadjutor - Sim, pode ser reparado. Uma rapariga nova... Diz que o senhor pároco é ainda novo. Vossa senhoria sabe o que são as línguas do mundo…



O cónego tinha parado:
- Ora histórias! Então o padre Joaquim não vive debaixo das mesmas telhas com a afilhada da mãe? E o cónego Pedroso não vive com a cunhada, e uma irmã da cunhada, que é uma rapariga de dezanove anos? Ora essa!
- Eu dizia... - atenuou o coadjutor.
- Não, não vejo mal nenhum. A S. Joaneira aluga os seus quartos, é como se fosse uma hospedaria. Então o secretário-geral não esteve lá uns poucos de meses?
- Mas um eclesiástico... - insinuou o coadjutor.
- Mais garantias, senhor Mendes, mais garantias! - exclamou o cónego.
E parando, com uma atitude confidencial:
- E depois a mim é que me convinha, Mendes! A mim é que me convinha, meu amigo!
Houve um pequeno silêncio. O coadjutor disse, baixando a voz:
- Sim, vossa senhoria faz muito bem à S. Joaneira...
- Faço o que posso, meu caro amigo, faço o que posso - disse o cónego.
E com uma entonação terna, risonhamente paternal:
- Que ela é merecedora, é merecedora…"  (*)






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(*) - O Crime do Padre Amaro - Eça de Queiroz - Portugal (1845-1900)

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