sábado, 3 de janeiro de 2009

Os Direitos Espezinhados (Baptista-Bastos)


Almeida Garrett escreveu, um dia, que "as Constituições são feitas para não ser respeitadas."
A afirmação do grande escritor e soldado da Liberdade era a verificação de um facto, não o eco desencantado de quem se deixara vencer pelo desânimo.
Embora o desencanto e o desânimo também dele se hajam apossado.

Lembrei-me da frase e cotejei-a com exemplos: o da nossa magna carta em especial.
A verdade é que nada do que é humano se proclama por decreto.
Lembro-me de que caminhávamos para o socialismo e para uma sociedade sem classes, objectivos abundantemente aplaudidos, à Direita e à Esquerda.
Foi o que se viu.
É o que se vê.

Saint-Just, na Convenção de Paris, afirmou: "A República Francesa proclama que a liberdade é uma ideia nova na Europa. E também que a felicidade é possível entre os homens."
O documento está repleto de boas intenções. E a verdade é que nem tudo se quedou nas intenções. A Revolução arrastou consigo o sopro de que as coisas do mundo poderiam ser alteradas pelas acções dos homens.
Se foram as palavras que incitaram os homens a agir, nem sempre as palavras possuem o poder de remover os imensos obstáculos que se opõem à natureza do que propõem.

Completam-se sessenta anos sobre a Declaração dos Direitos Humanos.
Logo no primeiro artigo, a nobreza da causa está consignada:
"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade."


Porém, as coisas não são bem assim.
A própria nascença de uns e de outros está condicionada pelos privilégios.
Quem nasce na Somália possui os mesmos direitos e as mesmas liberdades de quem nasce, por exemplo, na Alemanha?
E quem nasce pobre, na Alemanha, dispõe das mesmas prerrogativas de quem nasce rico?
E o "espírito de fraternidade" passou a ser comum entre os seres humanos, logo a seguir à publicação da Carta?

Evidentemente, estamos no território das intenções.
E, evidentemente também, nenhuma dessas intenções encontrou concretização. O mundo está melhor, diz-se.
Está melhor para quem?
A banalização do desrespeito pelos direitos do homem atingiu níveis insuspeitados, desde que a Declaração foi tornada pública.

O século XX foi o século das maiores atrocidades, com um desfile de horrores sem paralelo na História.
A II Grande Guerra nunca terminou: prolongou-se por outras, regionais, tribais e religiosas, até hoje ininterruptas.
O latrocínio, o etnocídio, o genocídio prosseguem a parada de infâmias.

A África, mas não só a África, é não apenas o continente do desespero como aquele onde a sangueira corre, perante a total indiferença das potências ocidentais, mais propensas a dar continuidade a políticas de devastação do que a preservar os direitos de uma condição humana cada vez mais desumanizada.
São milhões e milhões de povos africanos submetidos a ditaduras sustentadas pela Europa, com a negligência afrontosa de quem nessa mesma Europa tem a hipocrisia de falar em direitos e liberdades.


Quem se interessa pelas dores alheias?
Pouca gente.
A relação com o outro, já de si pouco sólida, transformou-se numa inqualificável impassibilidade.
Os direitos humanos são os direitos daqueles que se julgam acima de todos os direitos e de todos os deveres.
Com a miséria fazem-se negócios: até o negócio da compaixão e da caridade.
Amontoam-se fortunas com a infelicidade de milhões de seres humanos.

Pol Pot e o horrendo caudal de crimes cometido em nome do comunismo;
as chacinas no Vietname;
os crimes praticados pelas diversas juntas militares em diversos países da América Latina;
o estalinismo e a pretensa justificação do goulag, em nome do combate à contra-revolução e à defesa do socialismo - tudo isto aconteceu depois da edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

E a abominação não acabou.
Um pouco, ou largamente, por todo o lado o homem é espoliado da sua própria razão de ser.
Forças poderosíssimas opõem-se a quem luta pelos direitos humanos.
Em certos países, os propugnadores desses direitos eram considerados subversivos e, por vezes, eram encarcerados.
Aconteceu, por exemplo, em Portugal, na época de Salazar.

No artigo 7.º da Carta, lê-se: "Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual protecção da lei."
Sabe-se que não é assim.
Não só em Portugal: em todos os países "civilizados."
Advogados importantes do nosso país, o próprio bastonário da Ordem, Marinho Pinto (que de aqui saúdo), admitem, como axioma, que há justiça para quem tem dinheiro; quem o não tem, que se arranje.

Todos os dias somos confrontados com atropelos às consignas do documento, cujos sessenta anos comemoramos.
Comemoramos, realmente?
E quem comemora?
Aqueles que o praticam?
Mas aqueles que, modesta e discretamente o vão tentando, não recebem o aplauso, rejeitam a glória, o soldo ou a prebenda.

(Baptista-Bastos, jornalista e escritor - Jornal de Negócios, Lisboa, 12 de Dezembro de 2008)
(As marcações do texto, em itálico, são da responsabilidade da Torre)

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