sábado, 16 de janeiro de 2021

Histórias da Música - Os "Castrati" (Castrados) - Estrelas Famosas de Coros e Óperas



Na história do mundo musical, os "castrados" (castrati no plural italiano; castrato no respectivo singular) eram cantores adultos do sexo masculino cujos desempenhos vocais podiam equiparar-se aos das vozes femininas (fossem estas de sopranos, mezzo-sopranos ou contraltos).

Isto sucedia porque esses homens haviam sido submetidos a castração enquanto crianças (dos sete aos doze anos, ou seja, antes da puberdade ou na fase inicial desta). A operação impedia o crescimento normal da laringe, e portanto a "mudança de voz", fazendo com que esta adquirisse uma tessitura única, com um poder e uma flexibilidade diferentes tanto da voz da mulher adulta, como da voz mais aguda de um homem não castrado (contratenor).

Com a passagem dos anos as vozes ficavam "finas", mas com emissão muito poderosa, sustentada por pulmões masculinos adultos.
Segundo Candé: a voz dos castrati reúne potência e leveza; são capazes de sustentar num fio de voz longas notas sem respirar, emitir perfeitamente tanto sons de uma infinita suavidade como terríveis sons de timbre metálico.




A prática da castração de jovens cantores é muito antiga, existindo já, por exemplo, no Império Bizantino, há mais de 1600 anos. Mas o período áureo ocorreu entre os séculos XVI e XVIII. No século XVI, os castrati surgiram em força na Itália, pois havia necessidade de vozes agudas nos coros das igrejas (de onde as mulheres se achavam excluídas).

O duque de Ferrara tinha castrati no coro da sua capela, por volta de 1550; eles foram igualmente recrutados para o coro da igreja de Munique, na Alemanha, em 1574. E nem o Vaticano escapou a essa moda: em 1589, o papa Sisto V aprovou a mobilização de castrati para o coro da Basílica de S. Pedro.

Na ópera, esta prática atingiu o auge nos séculos XVII e XVIII. Certos papéis eram propositadamente escritos para castrati (como sucedia, por exemplo, nalgumas óperas de Haendel).
Nos dias de hoje, esses papéis são confiados a cantoras ou a cantores "normais" (neste último caso, a contratenores): mas as partes outrora escritas para castrati são actualmente de execução tão complexa que se torna quase impossível cantá-las.



Muitos dos rapazes sujeitos a castração eram crianças órfãs ou abandonadas. Sucedia até que algumas famílias pobres, sem possibilidades de criar as suas proles numerosas, entregavam os filhos para serem castrados e integrados numa carreira musical. Quando bem sucedidos, estes recebiam instrução em conservatórios, muitas vezes pertencentes à Igreja, onde leccionavam músicos famosos.

Em 1870, a prática foi proibida na Itália, último país onde ainda era seguida. Mas só em 1902 o papa Leão XIII proibiu em definitivo a utilização de castrati nos coros das igrejas. O último castrato a abandonar o coro da Capela Sistina foi o célebre Alessandro Moreschi (de que falaremos abaixo).

O fenómeno de popularidade dos castrati era semelhante ao que actualmente ocorre com as grandes estrelas da música popular, do desporto ou do cinema. E, por regra, eles tinham orgulho na sua arte. Conta-se até que, na presença de dois castrati, alguém terá lamentado a sua "triste sorte", recebendo, em troca, algumas gargalhadas e comentários jocosos: eles estavam longe de lamentar o que o destino lhes reservara. 


Farinelli

O mais famoso e bem pago castrato foi Carlo Broschi, conhecido pelo pseudónimo de Farinelli. Viveu entre os anos de 1705 e 1782. Usufruía, na sua época, de imensa popularidade, tal como acontecia com alguns outros castrati.

Ao contrário do que ocorria com a maior parte dos castrati, Farinelli não provinha de família sem recursos: seu pai era um aristocrata menor, e seu irmão, Ricardo Broschi, estudou composição num Conservatório de Nápoles e compôs especialmente para ele.

Castrado aos sete anos de idade, Farinelli ficou conhecido como um dos maiores cantores de sempre: ao escutá-lo, as pessoas achavam quase impossível cantar como ele o fazia. Possuía agilidade vocal incomum e controlo de respiração insuperável, sendo capaz de sustentar uma nota por cerca de um minuto.

Cantou para milhares de pessoas, incluindo alguns reis - como Luís XV de França e Felipe V de Espanha. Este último, que sofria de acessos de depressão, experimentava grandes melhoras quando o ouvia. Tanto assim que o convidou para que cantasse em exclusivo para ele, desafio que Farinelli aceitou: actuou para o soberano espanhol durante cerca de uma década.




No filme "Farinelli", de Gérard Corbiau, em que o papel do célebre cantor foi desempenhado por Stefano Dionisi, este foi dobrado (dublado) nas cenas de canto.

Na tentativa de reproduzir a especialíssima voz de um castrato, foram gravadas em separado as vozes de uma mulher (a soprano polaca Ewa Malas-Godlewska) e de um homem (o contratenor americano Derek Lee Ragin), que foram depois misturadas em computador.

O resultado, que não se pode garantir que reproduza fielmente a voz de Farinelli, pode escutar-se no vídeo seguinte. Acerca da capacidade para sustentar longamente uma nota (de que acima falámos), preste atenção ao que sucede a partir de  3' 31'':



Alessandro Moreschi (1858-1922)

Como dissemos, o último castrato a abandonar o coro da Capela Sistina (já no ano de 1913) foi Alessandro Moreschi.
Nasceu num tempo em que a moda dos castrati se estava a desfazer, o que tornou difícil achar um professor para o seu tipo de voz. Não beneficiou, portanto, nem dos ensinamentos transmitidos aos castrati anteriores nem, particularmente, do tratamento e educação musical dispensados a artistas como Farinelli.

Alessandro morreu esquecido e só numa casa de Roma, mas pertencem-lhe as únicas gravações conhecidas da voz de um castrato (recolhidas entre 1902 e 1904).

Apesar das limitações e deficiências das técnicas de gravação dessa época, o vídeo serve para dar uma ideia do que eram as vozes destes artistas singulares:



1 comentário:

Maria-Não-Vai-Com-As-Outras disse...

Não se duvida que as performances destes artistas pudessem atingir níveis excecionais, mas isso era conseguido à custa de uma horrível mutilação a que as suas inocentes vítimas não poderiam furtar-se. Foi um bom exemplo da estupidez e da crueldade a que o ser humano pode descer, com o apoio dos poderosos e, até, da poderosa e obscurantista Igreja. Perfeitamente equiparável à barbaridade da mutilação genital feminina que ainda se pratica nos nossos dias, para vergonha da humanidade.