sábado, 11 de dezembro de 2021

Como eram as meninas de Lisboa em 1872 (segundo Eça de Queiroz)






A menina solteira! Vejamos o tipo geral de Lisboa. É um ser magrito, pálido, metido dentro de um vestido de grande puff, com um penteado laborioso e espesso, e movendo os passinhos numa tal fadiga, que mal se compreende como poderá jamais chegar ao alto do Chiado e da vida.

O primeiro sinal saliente é a anemia.

Taine diz – pintando o sólido vigor inglês – que o dever essencial de uma menina é ter saúde. Uma pele fresca e lisa, músculos que jogam livremente, busto direito, beiços vermelhos – indicam juízo forte, consciência recta, um sentir puro. A palidez, as olheiras, o peito deprimido, o ar murcho – revelam um ser devastado por apetites e sensibilidades mórbidas.

Ora, entre nós, as raparigas não têm saúde. Magrinhas, enfezadas, sem sangue, sem carne, sem força vital – umas padecem de nervos, outras de estômago, outras do peito, e todas da clorose que ataca os seres privados do sol.




Em primeiro lugar, não respiram. Os seus dias são passados na preguiça de um sofá, com as janelas fechadas; ou percorrendo num passinho derreado a Baixa e a sua poeira. Portanto, falta de ar puro, são, restaurador.

O ar da Baixa corrompe o sangue; e o ar das salas, resguardadas por cortinas ou alumiadas a gás, não tem oxigénio e portanto não alimenta.

Depois, não fazem exercício. Uma inglesa tem por dever moral, como a oração, o passeio – o largo passeio, bem marchado durante duas horas, sem preocupação “janota”, todo de higiene.

Aqui, as que andam a pé, depois de irem de uma loja na Rua do Ouro a uma igreja no Loreto, arquejam e recolhem à pressa no ónibus. Algumas mesmo não sabem andar; escorregam, saltitam, oscilam.

Nada dá tanta ideia da constância de carácter como a firmeza do caminhar. Uma alemã, uma inglesa, anda como pensa – direita e certa.




As nossas raparigas, constantemente sentadas e aninhadas, quando têm de se pôr a pé e de marchar, gingam e rolam. Além disso, o hábito do sofá, do recosto e da almofada, acostuma às posições lânguidas; cabeça errante, braços amolecidos, corpo abandonado.

Uma inglesa nunca toma, por pudor, estas atitudes. São atitudes de serralho ou de pomba amorosa. Uma menina está direita e firme.

Depois, não comem. É raro ver uma menina alimentar-se racionalmente de peixe, carne e vinho. Comem doce e alface.

Jantam as sobremesas. A gulodice do açúcar, dos bolos, das natas, é uma perpétua desnutrição.

Nas casas de província, onde a moral existe guardada em decrépitos provérbios como em frascos, dizem os velhos, com ingénuo horror: mulher gulosa, bicha manhosa.




Lisboa é uma cidade doceira, como Paris é uma cidade intelectual. Paris cria a ideia e Lisboa o pastel. Daí a grande quantidade de doenças de estômago e de maus dentes. A deterioração pelo doce começa aos quatro anos. O sangue alimentado a massa, ovos, natas, dá estes corpos débeis e estas almas amolecidas.

Outra causa de doença é a toilette.

Com estes penteados enormes, eriçados, insólitos, em forma de capacete, de fronha, de chalé, de concha, e com os materiais tenebrosos que metem por baixo para sustentar e erguer mais a construção inclemente, acumulam sobre a cabeça um fardo, uma trouxa, que não deixa arejar o crânio.
A transudação acumula-se à raiz do cabelo, fecha os poros, cria um estado de inflamação.

Ouve-se dizer quase sempre às mulheres – Sinto hoje um peso na cabeça!...
É o fardo! É o crânio que, sem ar, amolentado, está adoecendo como um corpo que não se despe.




Lisboa é a cidade do Universo onde as meninas mais se espartilham. O espartilho que destrói a beleza da linha, a melodia das curvas naturais, dificulta, ao mesmo tempo, a circulação, a respiração e a digestão. Fere as três causas da vida.
 
De modo que o balanço das condições físicas de uma rapariga portuguesa é este: músculos sem exercício; pulmões sem ar; circulação comprimida; digestão estrangulada.

A primeira consequência é que uma rapariga assim destrói a sua beleza, a vivaz mocidade, e a graça.

A pele amarelece, os olhos encovam, os lábios gretam, as orelhas despegam do crânio, o nariz afila, as mãos humedecem, todo o corpo corcova – e na bela idade da florescência, e na fresca expansão da vida, uma pobre rapariga de quinze ou dezoito anos está como alguma coisa de amarrotado, de melado, de murcho, de em segunda mão, com aquele aspecto safado que o pó das estradas dá à virgindade das folhas.

Começam a precisar, para serem bonitas, da luz do gás. No brilho artificial daquela luz crua, uma menina, com os cabelos lustrosos, um pouco de pó-de-arroz e muitos tules espalhados, tem encanto e pode seduzir.

Mas que venha, ao outro dia, a sincera luz da manhã! Todas as máculas se destacam: os cabelos, chamuscados do ferro de frisar, estão secos e cor de rato, os beiços são como um velho bago de romã espremida, o nariz tem, na cartilagem que o liga ao rosto, um vinco escuro, toda a pele parece a de uma galinha cozida!...”

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Fonte: Eça de Queiroz – Uma Campanha Alegre (de As Farpas) – vol II – Lello & Irmão-Editores – Porto – Portugal – Ano de 1979 – Págs. 109-112.





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