quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Suspeitas de crime na morte de D. João VI (de Portugal e Brasil)

Rei D. João VI (Queluz 1767- Lisboa 1826)

Sua Majestade fora a Belém [Lisboa] comer uma merenda. Era nos primeiros dias de Março [de 1826]. Quando voltou a palácio achou-se, à noite, mal – cãibras, sintomas de epilepsia. Vieram médicos: o barão de Alvaiázere e o valido cirurgião Aguiar.

No dia seguinte, o estado do enfermo piorou. E o rei decidiu-se a despir de si o pesado encargo do governo.

A 7, a Gazeta publicava o decreto nomeando a regência, presidida pela infanta D. Isabel Maria, cuja bondade merecia as graças particulares do infeliz pai. Esta minha imperial e real determinação, afirmava o decreto do dia 6, regulará também para o caso em que Deus seja servido chamar-me à sua santa glória, enquanto o legítimo herdeiro e sucessor desta coroa não der as suas providências…

Mas quem era esse legítimo herdeiro?
D. Pedro, o brasileiro?

D. Miguel, no seu desterro de Viena?

Não o dizia o rei moribundo, que toda a vida se achara indeciso, e acabava como tinha existido, sem uma afirmação de vontade, entre flatos, na impotência de uma morte oportuna.


D. João VI no Brasil (ano de 1808)


Em Lisboa corriam os boatos mais extravagantes.

O velho imperador sem império, rei de dois mundos já reduzidos ao que ele chamava o seu canapé da Europa, massa humana estendida num leito, era como um valo ou barreira que represava a torrente de ambições e fúrias soltas ou mal contidas em 1820, em 1823, em 1824.

O caos de conflitos dinásticos, religiosos, políticos, que a fome universal acirrara, ia reaparecer à luz do dia — tão depressa o caixão do imperador-rei terminasse a viagem mortuária, do paço ao carneiro de S. Vicente de Fora.

Logo que a notícia da doença se propagou, e, mais ainda, quando apareceu o decreto do dia 6, correu uma opinião forte. D. João VI tinha sido envenenado.
A peçonha fora propinada nas laranjas da merenda de Belém; embora o dessem por vivo, era cadáver quando saiu o decreto. 

Conservavam-no para enganar, para preparar melhor os ânimos. Mas quem era o autor de tamanhos crimes?

A rainha [Carlota Joaquina], diziam os constitucionais de então.

Os constitucionais, diziam os absolutistas apostólicos.

Entretanto a rainha era esbulhada da regência, e, se tramara o feito, saía-se duas vezes mal — por isto, e porque à indecisão do decreto responderam o consenso geral e os regentes proclamando rei de Portugal o brasileiro [D. Pedro, primeiro imperador do Brasil].


D. João VI regressa do Brasil a Portugal (Lisboa, ano de 1821)


No dia 10 pela tarde morreu o rei, oficial ou realmente. Houve  sentimento e lágrimas, porque, na sua moleza insípida, era bom; sobretudo porque deixava depois de si um vácuo, uma sombra povoada de medos das inevitáveis catástrofes amontoadas e  iminentes.

Este susto agravava a maledicência geral. Ninguém já punha em dúvida a causa da morte do rei. Os boatos eram positivas certezas — de que o parecer dos médicos depois da autópsia concluiria pelo envenenamento.

Em tudo se achavam provas. Os absolutistas afirmavam cerradamente que o cozinheiro Caetano fora convidado pelos constitucionais, e que, por se recusar, morrera com o veneno destinado para o rei: com efeito, o cozinheiro caíra de repente.

Por outro lado, atribuíam-se confissões graves ao barão de Alvaiázere, que também morrera logo; e o cirurgião Aguiar, sobre quem recaíam as acusações de ter propinado o veneno dos pedreiros-livres, o cirurgião valido que fora brindado com um posto na diplomacia, morria também, assassinado segundo uns, suicida na opinião dos mais — devorado pelos remorsos do crime praticado contra o seu benfeitor!

Muita gente dizia ter lido cartas em que de Lisboa se anunciava a doença, a morte certa do rei, bastantes dias antes da merenda de Belém.


Alegoria às virtudes de D. João VI (quadro de Domingos Sequeira)


Se D. João VI morreu ou não envenenado, nem se sabe, nem importa. O que vale é o facto da opinião geral sobre o caso; e essa opinião acreditava num crime.

Os vómitos e delíquios do imperador-rei, o cortejo dos cadáveres com que o seu corpo era metido no túmulo, faziam de um crime o intróito da história dos longos crimes da sua sucessão.

A tragédia portuguesa começava, e o travo da peçonha acirrava os ânimos prontos para um combate inevitável.

A regência, e todos, tinham reconhecido como rei D. Pedro IV [Pedro I do Brasil]; mas com a certeza de que esse acto era uma pura formalidade, um incidente sem alcance, um preito, apenas, dado à doutrina da hereditariedade e ao direito da primogenitura.

Imperador no Brasil, D. Pedro não podia ser rei em Portugal: havia apenas um ano que se assinara o tratado da separação redigido pelo inglês Stuart, e sabia-se que por coisa alguma a Inglaterra consentiria na reunião dos dois estados [Portugal e Brasil].

D. Pedro teria de abdicar por força; e em quem, se não no infante D. Miguel, seu irmão? (…)

Tudo se faria em boa paz, e os medos gerais provar-se-iam infundados.

Ingénua ilusão!

Para além das questões formais, havia, no fundo, um duelo inevitável. (..) Só [seriam de esperar] o ferro, o fogo, o canhão, o punhal, a miséria, e um cataclismo final que terminasse pela morte de um dos contendores. (*)


(*) - Oliveira Martins - Portugal Contemporâneo - Tomo I - 3.ª edição - Pgs.1-5 - Livraria de António Maria Pereira (Editor) - Rua Augusta, 50-54, Lisboa (Ano de 1895)

[Texto actualizado pela Torre da História Ibérica]

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