domingo, 14 de fevereiro de 2010

Poeminhas Satíricos - "Um Salão" (Garcia Monteiro)



Às discretas soirées de D. Amália Costa
não vai o que em geral se chama gente baixa;
esta senhora tem sangue fidalgo e gosta
de conservar-se em pé na altura em que se acha.

É tal a selecção que há quem se zangue.
O festejado poeta Aurélio Câncio Rosa
disse já: «Na questão da análise do sangue...
Oh!... É uma senhora extra-escrupulosa!»

A alguém disse ela um dia: «Hoje um simples artista
quer ser gente também. Ah! creia que me exalto
quando vejo um ninguém a erguer-se, a dar na vista,
tendo o arrojo de usar bengala e chapéu alto!»

E os seus olhos aqui tornaram-se fosfóricos.
Ora é fácil de ver por semelhantes falas
que só o que possui pé nobre, pés históricos,
é que pode pisar o chão das suas salas.

Ali vai, por exemplo, o senhor João Proença,
que é barão e será visconde qualquer dia;
homem que às vezes sente uma tristeza imensa
por ter sido alfaiate — um erro que ele expia.

Ali vai o Liró, de esplêndidas maneiras,
cuja profundidade em ciência de minuete
iguala a vastidão das suas algibeiras,
que levam de ordinário o resto do bufete.

Ali vai Câncio Rosa, um vate de alto apreço,
que as damas têm à mão para inventar alcunhas;
mas sempre triste em verso... Um luto! Não conheço
luto mais negro; passa ao colarinho e às unhas.

Consta que no final duma recitação
em que exaltara o mar, «gigante d'ais tamanhos»
perguntou-lhe uma velha em tom de admiração:
«Se o senhor ama o mar, porque não toma banhos?»

Ali vai o senhor Mateus do Nascimento,
depositário fiel, seguro, de tal brio,
que deram-lhe a guardar um certo testamento
e ele fê-lo tão bem que ninguém mais o viu.

Ali vai o major Espadas, um valente,
homem cujo valor tem suscitado invejas,
pronto sempre a bater-se. E ao chá? Façam-lhe frente
Que bravura! É um herói no assalto das bandejas.

Vão outras damas mais de igual merecimento,
a quem se pede à vez «que a festa solenizem»:
E cada qual então, puxando o seu talento,
apresenta o que sabe. E que talentos! dizem.

Produz-se a animação assim desde o começo;
Marca as danças Liró; Espada dá notícias;
toma-se um rico chá, de que se diz o preço...
Umas noites enfim de poéticas delícias.

Não é pois de admirar a roedora inveja
que existe. Câncio então, no Liberal do Pinto,
dá notícia; e conclui: «Inútil talvez seja
dizer que ali só vai o que há de mais distinto».

Garcia Monteiro (1859-1913)

(Horta, Açores, Portugal)

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