quarta-feira, 14 de abril de 2021

Recordando tempos de D. João VI, rei de Portugal e do Brasil (4) - A infância de Carlota Joaquina, esposa do monarca (2.ª parte)


 (Continuação daqui)


Resumo:

Casamento em Portugal - Meninas-crianças não dormem com os maridos - A corte dos velhos - Um diabinho à solta no palácio - Crime e castigo com um jumento à mistura - Rainha e nora em alegre convívio - Tragédia da rainha doida - Finalmente o "ajuntamento" do Príncipe e da Princesa do Brasil


Carlota Joaquina

D. João e Carlota Joaquina tinham já casado por procuração quando ela saiu de Aranjuez para Portugal. A união religiosa ocorreu a 9 de Junho de 1785, em Lisboa, na capela do Palácio da Ajuda, sendo os noivos abençoados pelo Cardeal Patriarca.

Atendendo à idade da noiva (dez anos), a consumação do matrimónio (ou seja, o ajuntamento de D. João e de D. Carlota, como então se dizia) ficou naturalmente adiada até que ela reunisse condições fisiológicas para tal. 
Durante o tempo de espera, D. João, que contava dezoito anos quando Carlota chegou, foi para ela uma espécie de irmão mais velho. O futuro rei (que, na altura, nem sonhava poder vir a sê-lo) simpatizou com a pequena esposa, achando-a espertíssima e intelectualmente precoce. Dava longos passeios com ela e, à noite, entre outros passatempos, jogavam às cartas ("ao burro", como ele deixou escrito).

Mas Carlota, que provinha de um ambiente onde podia conviver com outras crianças, tinha vindo parar a uma corte exclusivamente composta de gente crescida e - sob o ponto de vista da recém-chegada - na maior parte envelhecida.
A rainha, D. Maria I, sua sogra, ia nos 50 anos. O marido desta, D. Pedro, quase nos 68. Os cunhados, D. José e  D. Maria Benedita, príncipes do Brasil, contavam 24 e 39, respectivamente, e não tinham filhos.

(Nota - Príncipe do Brasil era o título nobiliárquico que então se dava ao herdeiro presuntivo da Coroa portuguesa. D. José era o filho mais velho de D. Maria I e, portanto, era ele o príncipe do Brasil, herdeiro da Coroa, e não D. João. Este só adquiriu o título, passando à condição de herdeiro, quando D. José morreu prematuramente, em 1788).

Palácio de Queluz, nas proximidades de Lisboa.
No seus jardins brincou e passeou Carlota Joaquina durante anos.
Foi aqui que nasceram quase todos os seus filhos,
incluindo Pedro, primeiro imperador do Brasil.

Carlota Joaquina, que na altura mal sabia falar português, deve ter-se sentido muito deslocada no seio da nova família, havendo quem nisso descubra a razão das diabruras que não demorou a pôr em prática. Mas tudo sugere que ela trouxera já de Espanha o gosto e o hábito de certos desmandos, o que faz suspeitar da educação e da permissividade de que desfrutara na corte espanhola.

D. João ralhava-lhe uma que outra vez, quando ela se portava mal. Mas, indiferente a isso e surda aos rogos de aias e educadores, a garota prosseguia com as tropelias. Levantava-se tarde, demorava eternidades para se vestir, barafustava que os vestidos e os sapatos lhe estavam apertados. Além disso, tinha opiniões bastante vincadas sobre as coisas e uma indomável tendência para tentar impô-las aos outros, ainda que se tratasse de adultos. (Conservaria algumas destas características de personalidade na vida adulta, o que ajuda a compreender muitas das intervenções políticas que protagonizou).

Se a pressionassem demasiado, Carlota sabia responder com insolência e língua solta, nomeadamente a D. Maria Ana, irmã solteira de D. Maria I, com quem embirrava amiúde.
À mesa, quando lhe apetecia, recusava usar o garfo e punha-se de súbito a comer com as mãos. Quando se irritava, ou por simples capricho, atirava comida à cara das camareiras e, para grande escândalo de quem assistia, corria de vez em quando a levantar-lhes as saias. Conta-se que, certo dia, não se sabe bem porquê, chegou a morder uma orelha ao pobre D. João, seu marido.

O padre Felipe de San Miguel, com quem ela comprovadamente simpatizava, nem por isso foi poupado. Se Carlota Joaquina amuasse a sério durante as aulas, não havia ninguém, nem mesmo o padre, que a pudesse arrancar a horas e horas de um silêncio obstinado e de muito mau presságio...


Estátua da rainha D. Maria I, no largo fronteiro ao palácio de Queluz.

Anna Michelini bem enviava cartas para Espanha dando nota do que se passava, mas isso pouco ou nada contribuía para pacificar a espanholita rebelde. Conhece-se, aliás, um comentário da mãe desta - a propósito de uns cachorros oferecidos à filha - bastante revelador sobre o que poderia esperar-se de Carlota: Pobres animaizinhos, depressa chegarão ao fim estando em tais mãos...

Em algumas ocasiões, e como última solução, recorria-se à autoridade de D. Maria I para meter nos eixos a pequena nora. A soberana usava quase sempre o mesmo expediente: ou Carlota se portava bem ou ficaria privada do divertimento favorito - longos e animados passeios pelos arredores de Queluz montada no seu burrico. Era, por regra, remédio santo...

Mas D. Maria I gostava muito de Carlota Joaquina e, enquanto conservou as faculdades mentais, exerceu sobre ela uma influência afectuosa e benfazeja. Apesar das acções de correcção que às vezes assumia, a soberana tratava-a por norma com generosa condescendência. E, na correspondência com os progenitores de Carlota, D. Maria era invariavelmente entusiástica e elogiosa em relação aos seus progressos.

Quando saía, a rainha fazia sempre questão de que a pequena nora a acompanhasse. Assim visitaram museus, conventos e a Casa Pia, assim passaram temporadas nas termas das Caldas da Rainha, assim cavalgaram juntas - a rainha na sua égua, Carlota no seu burrico - e assim foram pescar alegremente no mar de S. Martinho do Porto.
Ao que se sabe, Carlota Joaquina, tão cedo separada dos progenitores, retribuía o afecto da rainha e terá achado nela uma segunda mãe.


Carlota Joaquina


Mas, para seu mal e irremediável prejuízo, a infanta espanhola não beneficiou da companhia da rainha durante muito mais tempo. A partir de 1791 - tinha Carlota Joaquina 16 anos - D. Maria I começaria a sofrer de perturbações mentais, e, por essa razão, viria mesmo a ser afastada de  funções governativas no ano seguinte. Terá sido vítima, para além de alguma predisposição orgânica, de sucessivos desgostos (mortes do marido, Pedro, e do filho primogénito, José - em 1786 e 1788, respectivamente - aqui). Os ventos revolucionários que principiaram a soprar de França, em 1789, ter-lhe-ão vibrado o golpe final.

Entretanto, Carlota crescera e o seu organismo produziu finalmente as alterações fisiológicas indispensáveis ao ajuntamento com D. João. Os sinais de que amadurecera ocorreram em Fevereiro de 1790 e foram jubilosamente noticiados no país.
O primeiro encontro íntimo dos esposos aconteceu dois meses mais tarde, na noite de 5 para 6 de Abril, quando faltavam três semanas para que Carlota completasse 15 anos de idade. Nesse dia, ela foi solenemente conduzida ao quarto de D. João pela própria rainha, D. Maria - que vivia então os seus últimos tempos de sanidade -, e pela viúva do primogénito desta, D. José.

Carlota Joaquina dava assim início ao cumprimento da missão principal de qualquer mulher da sua condição numa monarquia hereditária: gerar filhos para a Coroa, garantindo a perpetuidade desta. E, apesar da relação mais ou menos turbulenta com D. João, a jovem espanhola cumpriria bem e com regularidade: com uma média de um parto a cada dois anos, ofereceu nove filhos à monarquia portuguesa.
Com aquele ajuntamento - também largamente publicitado na imprensa de Lisboa - findavam os tempos despreocupados e a menoridade pessoal e política de Carlota Joaquina.

A morte do primogénito de D. Maria I fizera de D. João o herdeiro da Coroa. Ele e Carlota eram, agora, o Príncipe e a Princesa do Brasil. Estavam quase a partir para um futuro repleto de incertezas, sobressaltos, aventuras e algumas grandes realizações que os tornariam inapagáveis - ainda que controversos - nas páginas da História de Portugal e do Brasil.


Handel
(Music  for the Royal Fireworks)


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