(Continuação daqui)
Resumo:
Casamento em Portugal - Meninas-crianças não dormem com os maridos - A corte dos velhos - Um diabinho à solta no palácio - Crime e castigo com um jumento à mistura - Rainha e nora em alegre convívio - Tragédia da rainha doida - Finalmente o "ajuntamento" do Príncipe e da Princesa do Brasil
Carlota Joaquina |
D. João e Carlota Joaquina tinham já casado por procuração quando ela saiu de Aranjuez para Portugal. A união religiosa ocorreu a 9 de Junho de 1785, em Lisboa, na capela do Palácio da Ajuda, sendo os noivos abençoados pelo Cardeal Patriarca.
Atendendo à idade da noiva (dez anos), a consumação do matrimónio (ou seja, o ajuntamento de D. João e de D. Carlota, como então se dizia) ficou naturalmente adiada até que ela reunisse condições fisiológicas para tal.
Durante o tempo de espera, D. João, que contava dezoito anos quando Carlota chegou, foi para ela uma espécie de irmão mais velho. O futuro rei (que, na altura, nem sonhava poder vir a sê-lo) simpatizou com a pequena esposa, achando-a espertíssima e intelectualmente precoce. Dava longos passeios com ela e, à noite, entre outros passatempos, jogavam às cartas ("ao burro", como ele deixou escrito).
Mas Carlota, que provinha de um ambiente onde podia conviver com outras crianças, tinha vindo parar a uma corte exclusivamente composta de gente crescida e - sob o ponto de vista da recém-chegada - na maior parte envelhecida.
A rainha, D. Maria I, sua sogra, ia nos 50 anos. O marido desta, D. Pedro, quase nos 68. Os cunhados, D. José e D. Maria Benedita, príncipes do Brasil, contavam 24 e 39, respectivamente, e não tinham filhos.
(Nota - Príncipe do Brasil era o título nobiliárquico que então se dava ao herdeiro presuntivo da Coroa portuguesa. D. José era o filho mais velho de D. Maria I e, portanto, era ele o príncipe do Brasil, herdeiro da Coroa, e não D. João. Este só adquiriu o título, passando à condição de herdeiro, quando D. José morreu prematuramente, em 1788).
Carlota Joaquina, que na altura mal sabia falar português, deve ter-se sentido muito deslocada no seio da nova família, havendo quem nisso descubra a razão das diabruras que não demorou a pôr em prática. Mas tudo sugere que ela trouxera já de Espanha o gosto e o hábito de certos desmandos, o que faz suspeitar da educação e da permissividade de que desfrutara na corte espanhola.
D. João ralhava-lhe uma que outra vez, quando ela se portava mal. Mas, indiferente a isso e surda aos rogos de aias e educadores, a garota prosseguia com as tropelias. Levantava-se tarde, demorava eternidades para se vestir, barafustava que os vestidos e os sapatos lhe estavam apertados. Além disso, tinha opiniões bastante vincadas sobre as coisas e uma indomável tendência para tentar impô-las aos outros, ainda que se tratasse de adultos. (Conservaria algumas destas características de personalidade na vida adulta, o que ajuda a compreender muitas das intervenções políticas que protagonizou).
Se a pressionassem demasiado, Carlota sabia responder com insolência e língua solta, nomeadamente a D. Maria Ana, irmã solteira de D. Maria I, com quem embirrava amiúde.
À mesa, quando lhe apetecia, recusava usar o garfo e punha-se de súbito a comer com as mãos. Quando se irritava, ou por simples capricho, atirava comida à cara das camareiras e, para grande escândalo de quem assistia, corria de vez em quando a levantar-lhes as saias. Conta-se que, certo dia, não se sabe bem porquê, chegou a morder uma orelha ao pobre D. João, seu marido.
O padre Felipe de San Miguel, com quem ela comprovadamente simpatizava, nem por isso foi poupado. Se Carlota Joaquina amuasse a sério durante as aulas, não havia ninguém, nem mesmo o padre, que a pudesse arrancar a horas e horas de um silêncio obstinado e de muito mau presságio...
Anna Michelini bem enviava cartas para Espanha dando nota do que se passava, mas isso pouco ou nada contribuía para pacificar a espanholita rebelde. Conhece-se, aliás, um comentário da mãe desta - a propósito de uns cachorros oferecidos à filha - bastante revelador sobre o que poderia esperar-se de Carlota: Pobres animaizinhos, depressa chegarão ao fim estando em tais mãos...
Em algumas ocasiões, e como última solução, recorria-se à autoridade de D. Maria I para meter nos eixos a pequena nora. A soberana usava quase sempre o mesmo expediente: ou Carlota se portava bem ou ficaria privada do divertimento favorito - longos e animados passeios pelos arredores de Queluz montada no seu burrico. Era, por regra, remédio santo...
Mas D. Maria I gostava muito de Carlota Joaquina e, enquanto conservou as faculdades mentais, exerceu sobre ela uma influência afectuosa e benfazeja. Apesar das acções de correcção que às vezes assumia, a soberana tratava-a por norma com generosa condescendência. E, na correspondência com os progenitores de Carlota, D. Maria era invariavelmente entusiástica e elogiosa em relação aos seus progressos.
Quando saía, a rainha fazia sempre questão de que a pequena nora a acompanhasse. Assim visitaram museus, conventos e a Casa Pia, assim passaram temporadas nas termas das Caldas da Rainha, assim cavalgaram juntas - a rainha na sua égua, Carlota no seu burrico - e assim foram pescar alegremente no mar de S. Martinho do Porto.
Ao que se sabe, Carlota Joaquina, tão cedo separada dos progenitores, retribuía o afecto da rainha e terá achado nela uma segunda mãe.
Carlota Joaquina |
Mas, para seu mal e irremediável prejuízo, a infanta espanhola não beneficiou da companhia da rainha durante muito mais tempo. A partir de 1791 - tinha Carlota Joaquina 16 anos - D. Maria I começaria a sofrer de perturbações mentais, e, por essa razão, viria mesmo a ser afastada de funções governativas no ano seguinte. Terá sido vítima, para além de alguma predisposição orgânica, de sucessivos desgostos (mortes do marido, Pedro, e do filho primogénito, José - em 1786 e 1788, respectivamente - aqui). Os ventos revolucionários que principiaram a soprar de França, em 1789, ter-lhe-ão vibrado o golpe final.
Entretanto, Carlota crescera e o seu organismo produziu finalmente as alterações fisiológicas indispensáveis ao ajuntamento com D. João. Os sinais de que amadurecera ocorreram em Fevereiro de 1790 e foram jubilosamente noticiados no país.
O primeiro encontro íntimo dos esposos aconteceu dois meses mais tarde, na noite de 5 para 6 de Abril, quando faltavam três semanas para que Carlota completasse 15 anos de idade. Nesse dia, ela foi solenemente conduzida ao quarto de D. João pela própria rainha, D. Maria - que vivia então os seus últimos tempos de sanidade -, e pela viúva do primogénito desta, D. José.
Carlota Joaquina dava assim início ao cumprimento da missão principal de qualquer mulher da sua condição numa monarquia hereditária: gerar filhos para a Coroa, garantindo a perpetuidade desta. E, apesar da relação mais ou menos turbulenta com D. João, a jovem espanhola cumpriria bem e com regularidade: com uma média de um parto a cada dois anos, ofereceu nove filhos à monarquia portuguesa.
Com aquele ajuntamento - também largamente publicitado na imprensa de Lisboa - findavam os tempos despreocupados e a menoridade pessoal e política de Carlota Joaquina.
A morte do primogénito de D. Maria I fizera de D. João o herdeiro da Coroa. Ele e Carlota eram, agora, o Príncipe e a Princesa do Brasil. Estavam quase a partir para um futuro repleto de incertezas, sobressaltos, aventuras e algumas grandes realizações que os tornariam inapagáveis - ainda que controversos - nas páginas da História de Portugal e do Brasil.
Handel
(Music for the Royal Fireworks)
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