No dia 9 de Julho de 1793, uma terça-feira, a diligência que fazia três vezes por semana a ligação entre Caen e Paris, na França, recebeu a bordo uma jovem de vinte e quatro anos que levava como destino, justamente, a capital do país.
A passageira era bonita e simpática, mas de aspecto frágil. Por isso, nenhum dos seus companheiros de viagem podia suspeitar de que ela escondia a férrea determinação de cumprir até ao fim a missão que escolhera: a de assassinar o homem que considerava como principal culpado do terror que varria a França nesses dias revolucionários.
A jovem chamava-se Marie-Anne Charlotte Corday d'Armont. Normalmente apresentava-se, e assinava, como Marie Corday. Mas ficaria na História com o nome, também abreviado, de Charlotte Corday.
Na quinta-feira, 11 de Julho, Charlotte chegou a Paris e foi hospedar-se no Hôtel de la Providence, rua dos Vieux-Augustins.
Charlotte Corday (1768-1793) |
Charlotte Corday viera ao mundo em Saint-Saturnin des Ligneries, na Normandia. Descendente do dramaturgo e poeta Pierre Corneille, fazia parte de uma família de raízes aristocráticas, mas desprovida de recursos. Por essa razão, foi educada como pensionista em Abbaye-aux-Dames (mosteiro feminino). Quando a Revolução Francesa encerrou os estabelecimentos religiosos, foi viver com uma parente idosa, em Caen.
Dotada de grande força de vontade e de notável inteligência, aproveitou então para completar a sua educação. Leitora voraz, travou conhecimento com autores antigos e mais recentes, como, entre outros, Plutarco e Corneille. Leu a Enciclopédia, para além de folhear com atenção os jornais da época.
Foi assim formando o seu pensamento político, tornando-se simpatizante da democracia e de muitas das ideias revolucionárias.
Era adepta dos Girondinos, que, na Assembleia Nacional e, depois, na Convenção Nacional, professavam ideias revolucionárias mais moderadas, em oposição ao brutal radicalismo dos Montanheses, ou Jacobinos.
Compreende-se, portanto, que Charlotte tenha reagido com horror à execução do rei Luís XVI (a da rainha Maria Antonieta estava ainda a caminho - rever aqui) e que se tenha indignado com a expulsão e proscrição dos deputados Girondinos por acção dos Jacobinos.
Dezoito desses deputados expulsos foram parar, exactamente, a Caen, onde Charlotte residia. Por essa altura, ela pudera já aperceber-se do papel que um homem - jacobino - assumira não só nessas expulsões, mas, sobretudo, no corrupio de execuções que aconteciam no país. Homens e mulheres, muitos deles inocentes de qualquer culpa, eram encaminhados para a guilhotina por acção de um deputado radical, incansável instigador daquelas matanças nos textos incendiários que escrevia. Os artigos que publicava significavam, para muitos cidadãos, inapeláveis sentenças de morte.
Esse homem era Jean-Paul Marat. E Charlotte Corday convenceu-se de que só o seu desaparecimento poderia contribuir para conter o caudal de sangue que escorria na Praça da Revolução. Pensava, também, que a acção de Marat em breve conduziria a França a uma guerra civil.
No seu entender, Marat não passava de "um monstro" sedento de sangue e, por isso, tomou a diligência de Caen com destino a Paris.
Tinha resolvido matá-lo.
Marat não nascera em França, mas na Suíça, de onde era natural a sua mãe. O pai era sardo.
As primeiras décadas da sua vida não deixavam entrever aquilo em que mais tarde se tornaria. Emigrou para Londres já depois dos trinta anos, exercendo medicina e escrevendo textos de pendor científico. Ao 34 anos regressou a Paris, onde prestou assistência médica à guarda pessoal de um irmão do rei Luís XVI (o futuro Carlos X).
Cultivando uma opinião exagerada acerca dos seus próprios méritos (considerava-se, por exemplo, superior a Newton), continuou a realizar experiências ditas "científicas" e publicava textos eruditos. Ansioso por promoção social, acercou-se de figuras das classes mais elevadas, procurando atraí-las como seus pacientes. Mas não teve grande êxito nessas manobras. E também falhou nas repetidas tentativas de ingressar na Academia das Ciências.
Com a passagem dos anos, Marat começou a sentir-se atraiçoado pelo mundo e pela sociedade em que vivia. Não aceitava que não lhe reconhecessem o superior talento de que se julgava dotado. Não compreendia a "injustiça" de que era alvo por parte daqueles que tinham o poder de decidir.
E assim se foi transformando num caso típico de frustrado social, buscando bodes expiatórios para os seu falhanços (Hitler seria, mais de cem anos depois, outro caso exemplar).
Marat não demorou a atribuir a culpa das suas frustrações à aristocracia francesa, que, segundo ele, estabelecia os padrões de selecção que permitiam excluí-lo do patamar intelectual e social a que se achava com direito.
A Revolução Francesa de 1789 foi, para este homem despeitado e cheio de ódio, a revelação dos caminhos da glória. Quanto mais pensava nas desconsiderações de que se julgava vítima, mais as identificava com as injustiças que oprimiam o povo.
Assim se tornou revolucionário, assim se tornou deputado (jacobino, naturalmente), assim foi galgando, de forma alucinante e impiedosa, os degraus de um radicalismo cruel e sem freio.
No jornal que fundara, L'Ami du Peuple (O Amigo do Povo, que mudou de nome várias vezes), apelava ao ódio e à violência, pedindo a morte na guilhotina de todos aqueles que - com provas ou sem elas - considerava seus inimigos ou inimigos da revolução.
Marat alcançara, finalmente, aquilo por que pugnara, em vão, durante toda a vida: reconhecimento público, influência social e - ainda que indirectamente - poder de vida e de morte sobre milhares de cidadãos.
Alguns dos textos que produziu expõem-no por inteiro. As suas palavras deixam a descoberto, com uma transparência por vezes quase ingénua, os tiques de narcisismo, a mania da perseguição, o elevado conceito de si próprio, os complexos de superioridade, o desprezo pelos outros... Traços que parecem revelar, em termos clínicos, um caso evidente de psicopatia hipertímica e fanática.
Veja-se uma amostra do que ele escreveu em L'Ami du Peuple:
"No início da Revolução, cansado das perseguições que sofri por tanto tempo às mãos da Academia das Ciências, abracei ansiosamente a ocasião que se apresentava para derrotar os meus opressores e alcançar uma posição adequada.
Cheguei à Revolução com as ideias já formadas, e conhecia tão bem os princípios da alta política que eles se tornaram lugares comuns para mim.
Tendo mais confiança nos falsos patriotas da Assembleia Constituinte do que eles mereciam, fiquei surpreendido com a sua mesquinhez e com a sua falta de virtude.
Acreditando que eles necessitavam de ver a luz, entrei em contacto com os deputados mais famosos (...). O seu silêncio teimoso perante as minhas cartas logo me provou que, embora eles precisassem de ver a luz, pouco se importavam com a iluminação.
(...) Eu fundei "O Amigo do Povo".
Comecei com um tom severo, mas honesto, o de um homem que deseja dizer a verdade sem quebrar as convenções da sociedade, e mantive esse tom durante dois meses inteiros.
Desapontado com o facto de isso não produzir o efeito que eu esperava (...), senti que era necessário renunciar à moderação.
Fortemente convencido da perversidade absoluta dos partidários do Antigo Regime e dos inimigos da liberdade, senti que nada se podia obter deles a não ser pela força.
Revoltado pelas suas tentativas, pelas suas manobras sempre recorrentes, percebi que elas não teriam fim se não se exterminassem os culpados.
Indignado ao ver os representantes da nação unidos aos seus inimigos mais mortais e às leis que servem apenas para tiranizar os inocentes que deveriam ter sido protegidos, lembrei ao povo soberano que ele não tinha mais o que esperar dos seus representantes e convoquei-o para fazer justiça com as suas próprias mãos.
Isso foi feito várias vezes."
Conclui amanhã (6-Dezembro-2020) - aqui
1 comentário:
Charlotte Corday foi uma verdadeira heroína da Revolução Francesa. Marat era um psicopata à rédea solta, grandemente responsável pelo terror que imperava no país e pelo massacre de muitos inocentes. Se não tivesse acabado como acabou, às mãos da corajosa Charlotte, teria provavelmente findado os seus dias na guilhotina, como sucedeu aos vários terroristas de que era cúmplice, como Robespierre, etc. etc.
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