“Muitas coisas preocupavam o Eça de Queiroz quando trabalhava.
Durante tempos só pôde escrever em certo almaço, que ele próprio ia comprar a uma pequena loja de chá e papel selado, no n.º 41 da Rua Larga de S. Roque.
Havia de sempre entrar no meu quarto com o pé direito, suspendendo-se por isso, no último momento, recuando o agourento pé esquerdo, quando este já inoportunamente se adiantasse (…).
Aterravam-no as correntes de ar, e andava continuamente a fechar a janela, ou as portas, a mudar a posição da cadeira onde se sentava, murmurando em voz cava:
- É a pneumonia, a congestão pulmonar fulminante – a morte, menino!
- É a pneumonia, a congestão pulmonar fulminante – a morte, menino!
A luz do candeeiro de petróleo que eu usava feria-lhe a vista; de modo que, a fim de concentrar a claridade sobre o papel em que escrevia, ou sobre o livro em leitura, prolongava, do seu lado, o abat-jour, com longas tiras de papel.
Não podia suportar poeira nas mãos e erguia-se amiúde da mesa para – interrompendo a composição, mas recitando em voz alta as frases já escritas – ir, cuidadosamente, lavar as pontas dos dedos.
Fumava cigarros sem cessar, enquanto compunha, inclinado sobre o papel que olhava muito de perto.
E, uma vez embebido nas suas criações, não falava, não escutava, não atendia a coisa alguma – embrulhando o cigarro, indo lavar as mãos ou fechar a porta, passeando pela casa, muito curvo, dando passadas altas e largas, fazendo gestos de dialogar com alguém invisível, resfolegando ruidosamente, abrindo muito os olhos, elevando e baixando nervosamente as sobrancelhas, as pálpebras, e as rugas horizontais da testa, onde ondulava, convulsa, a sua madeixa corredia, negra e triangular.
Escrevia com extrema facilidade e, nesta época, emendava muito pouco. As imagens, os epítetos ocorriam-lhe abundantes, tumultuosamente, e ele redigia rápido, insensível a repetições de palavras e rimas ou a desequilíbrio de períodos, sem exigências críticas de forma, aceitando, comovido, o que tão espontaneamente, tão sinceramente lhe ocorria.
Quando, nessas noites, ele me lia alguns dos seus Contos, a figura e a voz completavam-lhe as fantásticas criações.
Erguia-se quase nos bicos dos pés, de uma magreza esquelética, lívido – na penumbra das projecções do candeeiro – os olhos esburacados por sombras ao fundo das órbitas, sob as lunetas fumadas de aros pretos, o pescoço inverosimilmente prolongado, as faces cavadas, o nariz afilado, os braços lineares, intermináveis.
Então, com gestos de aparição e espanto, a voz lúgubre, sentimental – enfaticamente patética, ou gargalhando sinistramente – declamava.
Alta noite, quando a excitação do trabalho e do café nos havia quase alucinado, saíamos pelas ruas desertas do Bairro Alto – ou estendíamos as nossas explorações à Mouraria, à Alfama, em volta da Sé e pelas encostas mouriscas e fadistas do Castelo de São Jorge, a examinar a fisionomia fantástica, e quase humana, das casas antigas, algumas ainda então, nesses bairros, mais ou menos medievais.
(…) De ordinário, nas noites de composição e conversa mais absorventes, ou em seguida às nossas divagações peripatéticas, o Eça de Queiroz dormia em minha casa.
E havia, para ele, ritos determinados no modo de dispor a roupa que despia, antes de se deitar, colocando os punhos sobre uma mesa pela ordem por que os tinha usado, no braço direito e esquerdo, respectivamente, e dispondo as botas à porta – também, pelo mesmo método, ordenadamente emparelhadas - para que o meu criado as limpasse, de manhã, sem nos acordar.
E ao meter-se na cama, para explicar os seus movimentos supersticiosos, murmurava persignando-se:
- É preciso obedecer com fé e sem exame às leis subtis das coisas. Ninguém sabe exactamente, menino, de que possa depender o curso dos acontecimentos e o mistério complicado dos fados.
- É preciso obedecer com fé e sem exame às leis subtis das coisas. Ninguém sabe exactamente, menino, de que possa depender o curso dos acontecimentos e o mistério complicado dos fados.
(…) De tempos a tempos, o Eça de Queiroz dizia-me:
- Estamo-nos tornando impressos. Basta de ler e imaginar. Precisamos dum banho de vida prática. É-nos indispensável o acto humano – inverosímil, se for possível –, a aventura, a lenda em acção, o herói palpável.
Vamos, pois, cear com o capitão João de Sá – o João de Sá Nogueira, d’Artagnan de África em Lisboa, com licença registada.
E íamos, com efeito, encontrar este nosso amigo, oficial do Ultramar, que à ceia nos contava – durante o bacalhau com batatas, o meio bife e o vinho Colares – as pitorescas aventuras das suas viagens pelos sertões de Angola.”
……………………..
FONTE: Eça de Queiroz e Jaime Batalha Reis – Cartas e Recordações do seu Convívio
Lello & Irmão – Editores – Porto (Portugal) – 1966 (Págs. 118 a 123)
Sem comentários:
Enviar um comentário