Era uma vez uma dama gentil e senil que tinha um gato siamês.
Gato siamês!
Gato de raça, de bom-tom, de filiação, de
ânimo cristão. Lindo gato, gato terno, amigo, pertencente a uma classe quase
extinta de antigos deuses egípcios.
Êste gato só faltava falar. Manso e inteligente, seu olhar era humano.
Êste gato só faltava falar. Manso e inteligente, seu olhar era humano.
Mas falar não falava.
E sua dona, triste,
todo dia passava uma ou duas horas repetindo sílabas e palavras para êle, na
esperança de que um dia aquela inteligência que via em seu olhar explodisse em
sons compreensivos e claros. Mas, nada!
A dama gentil e senil era, naturalmente, incapaz de compreender o fenômeno. Tanto mais que ali mesmo à sua frente, preso a um poleiro de ferro, estava um outro ser, também animal, inferior até ao gato, pois era somente uma pobre ave, mas que falava! Falava mesmo muito mais do que devia!
A dama gentil e senil era, naturalmente, incapaz de compreender o fenômeno. Tanto mais que ali mesmo à sua frente, preso a um poleiro de ferro, estava um outro ser, também animal, inferior até ao gato, pois era somente uma pobre ave, mas que falava! Falava mesmo muito mais do que devia!
Um papagaio que falava pelas tripas do
Judas.
Curiosa natureza, pensava a mulher, que fazia um gato quase humano, sem
fala, e um papagaio cretino mas parlapatão.
E quanto mais meditava mais tempo gastava
com o gato no colo, tentando métodos, repetindo sílabas, redobrando cuidados,
para ver se conseguia que seu miado virasse fala.
Exatamente no dia 16 de maio de 1958 foi que teve a ideia genial.
Quando a ideia iluminou seu
cérebro, veio logo acompanhada da crítica, autocrítica: Mas, como não me ocorreu isso antes? perguntou ela para si própria,
muito gentil e senil como sempre, mas agora também autopunitiva. Como não me ocorreu isso antes?
O papagaio viu no brilho da dona o seu (dele) terrível destino e tentou escapar, mas estava preso. Foi morto, depenado, e cozinhado em menos de uma hora.
O papagaio viu no brilho da dona o seu (dele) terrível destino e tentou escapar, mas estava preso. Foi morto, depenado, e cozinhado em menos de uma hora.
Pois o raciocínio da mulher era
lógico e científico: se desse ao gato o papagaio como alimentação, não era
evidente que o gato começaria a falar? Não era?
O gato, a princípio, não quis comer o companheiro. Temendo ver fracassado o seu experimento científico, a dama gentil e senil procurou forçá-lo. Não conseguindo que o gato comesse o papagaio, bateu-lhe mesmo - horror! - pela primeira vez.
O gato, a princípio, não quis comer o companheiro. Temendo ver fracassado o seu experimento científico, a dama gentil e senil procurou forçá-lo. Não conseguindo que o gato comesse o papagaio, bateu-lhe mesmo - horror! - pela primeira vez.
Mas o gato se recusou.
Duas horas depois, porém, vencido pela fome, aproximou-se do prato e engoliu o
papagaio todo. Imediatamente subiu-lhe uma ânsia do estômago, ele olhou para a
dona e, enquanto esta chorava de alegria, começou a gritar, num tom meio
currupaco, meio miau-aua-au, mas perfeitamente compreensível:
- Madame, foge
pelo amor de Deus! Foge, madame, que o prédio vai cair. Corre madame, que o
prédio vai cair!
A mulher, tremendo de comoção e de alegria, chorando e rindo, pôs-se a gritar por sua vez:
A mulher, tremendo de comoção e de alegria, chorando e rindo, pôs-se a gritar por sua vez:
- Vejam, vejam, meu gatinho fala! Milagre! Milagre! Fala o meu gatinho!
Mas o gato, fugindo
ao seu abraço, saltou para a janela e gritou de novo:
- Foge, madame, que o prédio vai cair! Madame, foge! - e pulou para a rua.
Nesse momento, com um estrondo monstruoso, o prédio inteiro veio abaixo, sepultando a dama gentil e senil em meio aos seus escombros.
O gato,
escondido melancolicamente num terreno baldio, ficou vendo o tumulto diante do
desastre e comentou apenas, com um gato mais pobre que passava:
Veja só que cretina. Passou a vida inteira para fazer eu falar e no momento em que eu falei não me prestou a mínima atenção.
Moral: O mal do artista é não acreditar na própria criação.
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Emmanuel Vão Gôgo foi um pseudónimo de Millôr Fernandes, que colaborou na revista brasileira O Cruzeiro durante quase duas décadas.
Uma das colunas que assinava era o famoso Pif-Paf.
A história acima foi publicada, nessa coluna, no dia 24 de Setembro de 1960.
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