Ferreira de Castro
visitou o Japão durante os primeiros tempos do conflito desencadeado por Adolf
Hitler na Europa (1939). Nessa altura, os nipónicos ainda não haviam declarado
guerra aos Estados Unidos, o que só viria a ocorrer após a sua agressão a Pearl
Harbor (1941). Mas o escritor deu-se conta do clima belicista em
seu redor, decorrente da invasão da China perpetrada pelos
seus anfitriões a partir de 1937.
Quando chegou o dia da despedida, a bordo
do “Kamakura Maru”, no porto de Iocoama, ele pôde testemunhar um momento fugaz, mas
eloquente, desse terrível conflito:
“Na baía passa um barco
cinzento, carregado de tropas, a caminho da China. Junto das amuras, os
soldados gesticulam para marinheiros de outros navios fundeados. Decerto também
muitos olhos choraram e choram por eles, não aqui, mas lá nas aldeias do
interior, onde a vida é mais dura e se sabe pouco do Mundo”.
O escritor notou,
igualmente, um certo tipo de tensão racial no ambiente:
“Quanto mais se convive
com os japoneses e melhor se conhecem as suas qualidades, mais se lastima este
orgulho racial de que a maioria deles se encontra impregnada e o rumo bélico
que a esse orgulho tem sido dado (…). Isto explica até a atitude que o próprio
ministro do Japão no Canadá, que viaja, também, no “Kamakura Maru”, toma
perante os passageiros europeus e americanos, afirmando, ostensivamente, os
costumes nipónicos – fazendo-se servir à mesa antes da mulher, que o acompanha,
e andando pelo convés sempre com ela três passos atrás dele…”
E Ferreira de Castro entra,
propriamente, no relato da viagem:
“O cinzento barco que
transporta soldados para a China desaparece no fim da baía de Iocoama. Também o
“Kamakura Maru” está prestes a abalar. No grande salão de primeira classe,
rudes funcionários examinam, até ao último “sen”, o dinheiro dos passageiros. É
tão difícil a um japonês sair hoje do seu país, como a um estrangeiro nele
entrar. Os nipões que enchem o “Kamakura Maru” são antigos emigrantes que, após
uma visita à pátria, regressam às ilhas de Hawai e a S. Francisco, onde vivem
há muito. As suas famílias continuam a acenar-lhes com leques e bandeirolas, no
molhe. Sayonara! Sayonara! Adeus! Adeus!
O navio desatraca e
vai-se afastando lentamente. Singramos entre barcos alemães que trafegavam no
Oriente quando explodiu a guerra na Europa e que vieram refugiar-se aqui. Das
suas amuras, os marinheiros contemplam, estáticos, o avanço do barco que nos
conduz. Cruzamo-nos, em seguida, com dois orgulhosos couraçados nipões, que
demandam a sua base em Iocosuca, onde se encontra, como símbolo naval, a lápide
mortuária de Will Adams, o primeiro inglês que desembarcou no Japão. Lá se vê,
também, transformado em museu, o velho navio do almirante Togo, o homem que
convenceu os japoneses de que eles poderiam ser invencíveis nas águas do
Pacífico…
Ao fim da tarde, com
uma longínqua imagem do Monte Fuji, última visão da terra japonesa, estamos no
mar largo (…). Vamos navegando, agora, no famoso “Mar de Iocoama”. Estamos já a
um dia das costas nipónicas e, junto do escritório do comissário, numerosos japoneses
aguardam, em fila, a sua vez de telefonar os últimos adeuses para Tóquio.
De súbito, aparece um
criado, a recomendar, pressurosamente, aos passageiros, que acomodem bem os
objectos frágeis que tenham nos camarotes, pois um tufão se aproxima.
Vemos
alguns marinheiros colocarem cordas brancas ao longo dos corredores, para os
viajantes a elas se agarrarem quando caminhem. Em todo o navio há passos lestos,
portas que se abrem e fecham, um movimento nervoso.
Nós aceitamos o próximo
acontecimento com certo optimismo. Havíamos atravessado o Mar da China, em
pequenos barcos, justamente no período dos tufões – e não encontrámos tufão
algum. Agora, que o navio era grande e íamos no Pacífico, o episódio devia
carecer, talvez, de importância…
Cerca do meio-dia principiou
o espectáculo – o medonho espectáculo! O céu escureceu mais. E o vento, que
começara por suave litania, passou a ter uivos sinistros, prolongados,
repetidos, uivos que se produzem no próprio navio e que, todavia, parecem vir
das lonjuras infinitas do oceano. A bordo, a madeira, o ferro, o aço, tudo
quanto se mantém inânime e mudo, brama e geme agora. O vento mete-se nos
móveis, trespassa-os e fá-los gemer também.
Lá fora passa-se algo
apocalíptico. O imenso oval do mar, tão liso, tão tranquilo na véspera,
mostra-se lavrado por altivas ondas, que se sucedem umas às outras, se aniquilam
a si próprias e renascem de novo, cada vez mais altaneiras. O oceano adquiriu,
na sua majestosa revolta, um tom de azul forte, quase negro. Às vezes parece,
mesmo, breu derretido correndo em fúria ciclópica. Ao quebrar-se, as enormes
vagas projectam, sobre esta cor de tragédia, grandes manchas dum verde de
sulfato de cobre, que alastram um momento e logo desaparecem. Com o dorso
enfeitado de espuma, as ondas criam uma alucinante paisagem de montanhas
riscadas de neve, montanhas móveis, que abrem, entre si, constantes abismos.
O “Kamakura Maru”, um
dos cinco maiores navios do Japão, formosa nave de que os nipões tanto se
vangloriam, é, agora, um mísero brinquedo entregue à cólera dos elementos. Ele
inclina-se, tontamente, a bombordo e a estibordo, ergue-se de proa e logo de
popa, como se procurasse uma estabilidade que jamais encontra. Cada vez as suas
inclinações são maiores e dir-se-á que vai tombar definitivamente, dum
momento para o outro.
De quando em quando, as ondas apresentam-se muito mais
altas do que o navio; vemo-las ao nosso lado e acima de nós como quem
contempla, de baixo, uma grande muralha, e essa mole rugidora parece ir
desmoronar-se sobre o barco, afundando-nos num segundo. E sempre, sempre, o
uivo macabro do vento, cada vez mais forte. O furacão pulveriza a água na
crista das ondas, lançando, depois, longas nuvens de poeira líquida, que
invadem o navio, fustigando-nos violentamente o rosto, como se fossem saibro.
Não se pode andar no convés. O vento arrasta-nos e atira-nos contra a amurada.
A bordo já tudo foi
amarrado e no soalho estenderam-se ásperas telas para evitar que os passageiros
escorreguem, ao caminhar agarrados às cordas. Mas isso é quase inútil. Quando o
navio se inclina mais, parecendo deitar-se, de lado, sobre o mar, ouvem-se
gritos de alucinação, surdos rumores e sucessivos estrondos.
São passageiros
aterrorizados e são móveis que se desaparafusam e correm, entrechocando-se, no
declive subitamente criado; é o piano que se volta e vai bater no grande
espelho, partindo-o com enervantes estrépitos. E, algures, algo tomba,
pesadamente, como numa cisterna com eco.
No jardim de inverno, as longas
cadeiras de repouso, que, com suas seis pernas, pareciam aptas a resistir ao
trágico balanço, disparam também, como os móveis, umas fecham-se por si próprias, outras despedaçam-se, lançando violentamente os ocupantes ao chão.
Vários passageiros ficam feridos. Muitos deles já estavam doentes, com convulsões
do estômago, desde o princípio do tufão; tinham, porém, abandonado os
camarotes, receando que, no caso de naufrágio, estando eles lá metidos, não se
pudessem salvar.
Com andamento grotesco, que outro não permitem as inclinações
do barco, várias mulheres são conduzidas à enfermaria. E de entre os japoneses
instalados na proa vêm constantes gritos, que o vento logo abafa. Vemos passar
um homem numa maca, logo um segundo amparado por enfermeiros. O primeiro
fracturou uma perna, e do outro o sangue escorre-lhe da cabeça.
Aproxima-se a noite e a
inferneira prossegue. As vagas apresentam-se mais sombrias, mais trágicas, na
sua batalha imensa e inútil. E o rugido aéreo continua satanicamente.
Poucos
descem para jantar. Quase todos estão de olhos fixos no mar e de ouvidos
captando a ária sinistra, à espera do que pode acontecer, do que eles pensam
que pode acontecer dum instante para o outro.
Às vezes, o navio eleva-se tanto que
nos falta o ar. E dir-se-á que o próprio barco deixou de respirar perante a
incerteza do seu destino imediato, como se receasse não poder escapar desta ou
daquela onda que, de súbito, o ergue no seu dorso e logo o deixa cair no
abismo.
Assim vivemos a
noite, até que a fadiga nos venceu. O homem habitua-se a tudo e nós acabamos
por adormecer. De manhã, já o tufão ia longe. Tínhamos saído, enfim, do “Mar de
Iocoama”. Estávamos já distantes do Japão, mundo de estranhas e contraditórias
imagens que, provavelmente, a nossa vida não permitirá que voltemos a ver. Sayonara!"
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