sábado, 5 de outubro de 2019

"A Volta ao Mundo", de Ferreira de Castro (3) - Das despedidas do Japão ao terrível tufão em alto mar




Ferreira de Castro visitou o Japão durante os primeiros tempos do conflito desencadeado por Adolf Hitler na Europa (1939). Nessa altura, os nipónicos ainda não haviam declarado guerra aos Estados Unidos, o que só viria a ocorrer após a sua agressão a Pearl Harbor (1941). Mas o escritor deu-se conta do clima belicista em seu redor, decorrente da invasão da China perpetrada pelos seus anfitriões a partir de 1937.
 Quando chegou o dia da despedida, a bordo do “Kamakura Maru”, no porto de Iocoama, ele pôde testemunhar um momento fugaz, mas eloquente, desse terrível conflito:

“Na baía passa um barco cinzento, carregado de tropas, a caminho da China. Junto das amuras, os soldados gesticulam para marinheiros de outros navios fundeados. Decerto também muitos olhos choraram e choram por eles, não aqui, mas lá nas aldeias do interior, onde a vida é mais dura e se sabe pouco do Mundo”.

O escritor notou, igualmente, um certo tipo de tensão racial no ambiente:

“Quanto mais se convive com os japoneses e melhor se conhecem as suas qualidades, mais se lastima este orgulho racial de que a maioria deles se encontra impregnada e o rumo bélico que a esse orgulho tem sido dado (…). Isto explica até a atitude que o próprio ministro do Japão no Canadá, que viaja, também, no “Kamakura Maru”, toma perante os passageiros europeus e americanos, afirmando, ostensivamente, os costumes nipónicos – fazendo-se servir à mesa antes da mulher, que o acompanha, e andando pelo convés sempre com ela três passos atrás dele…”





E Ferreira de Castro entra, propriamente, no relato da viagem:

“O cinzento barco que transporta soldados para a China desaparece no fim da baía de Iocoama. Também o “Kamakura Maru” está prestes a abalar. No grande salão de primeira classe, rudes funcionários examinam, até ao último “sen”, o dinheiro dos passageiros. É tão difícil a um japonês sair hoje do seu país, como a um estrangeiro nele entrar. Os nipões que enchem o “Kamakura Maru” são antigos emigrantes que, após uma visita à pátria, regressam às ilhas de Hawai e a S. Francisco, onde vivem há muito. As suas famílias continuam a acenar-lhes com leques e bandeirolas, no molhe. Sayonara! Sayonara! Adeus! Adeus!

O navio desatraca e vai-se afastando lentamente. Singramos entre barcos alemães que trafegavam no Oriente quando explodiu a guerra na Europa e que vieram refugiar-se aqui. Das suas amuras, os marinheiros contemplam, estáticos, o avanço do barco que nos conduz. Cruzamo-nos, em seguida, com dois orgulhosos couraçados nipões, que demandam a sua base em Iocosuca, onde se encontra, como símbolo naval, a lápide mortuária de Will Adams, o primeiro inglês que desembarcou no Japão. Lá se vê, também, transformado em museu, o velho navio do almirante Togo, o homem que convenceu os japoneses de que eles poderiam ser invencíveis nas águas do Pacífico…

Ao fim da tarde, com uma longínqua imagem do Monte Fuji, última visão da terra japonesa, estamos no mar largo (…). Vamos navegando, agora, no famoso “Mar de Iocoama”. Estamos já a um dia das costas nipónicas e, junto do escritório do comissário, numerosos japoneses aguardam, em fila, a sua vez de telefonar os últimos adeuses para Tóquio.





De súbito, aparece um criado, a recomendar, pressurosamente, aos passageiros, que acomodem bem os objectos frágeis que tenham nos camarotes, pois um tufão se aproxima.
Vemos alguns marinheiros colocarem cordas brancas ao longo dos corredores, para os viajantes a elas se agarrarem quando caminhem. Em todo o navio há passos lestos, portas que se abrem e fecham, um movimento nervoso.
Nós aceitamos o próximo acontecimento com certo optimismo. Havíamos atravessado o Mar da China, em pequenos barcos, justamente no período dos tufões – e não encontrámos tufão algum. Agora, que o navio era grande e íamos no Pacífico, o episódio devia carecer, talvez, de importância…

Cerca do meio-dia principiou o espectáculo – o medonho espectáculo! O céu escureceu mais. E o vento, que começara por suave litania, passou a ter uivos sinistros, prolongados, repetidos, uivos que se produzem no próprio navio e que, todavia, parecem vir das lonjuras infinitas do oceano. A bordo, a madeira, o ferro, o aço, tudo quanto se mantém inânime e mudo, brama e geme agora. O vento mete-se nos móveis, trespassa-os e fá-los gemer também.





Lá fora passa-se algo apocalíptico. O imenso oval do mar, tão liso, tão tranquilo na véspera, mostra-se lavrado por altivas ondas, que se sucedem umas às outras, se aniquilam a si próprias e renascem de novo, cada vez mais altaneiras. O oceano adquiriu, na sua majestosa revolta, um tom de azul forte, quase negro. Às vezes parece, mesmo, breu derretido correndo em fúria ciclópica. Ao quebrar-se, as enormes vagas projectam, sobre esta cor de tragédia, grandes manchas dum verde de sulfato de cobre, que alastram um momento e logo desaparecem. Com o dorso enfeitado de espuma, as ondas criam uma alucinante paisagem de montanhas riscadas de neve, montanhas móveis, que abrem, entre si, constantes abismos.

O “Kamakura Maru”, um dos cinco maiores navios do Japão, formosa nave de que os nipões tanto se vangloriam, é, agora, um mísero brinquedo entregue à cólera dos elementos. Ele inclina-se, tontamente, a bombordo e a estibordo, ergue-se de proa e logo de popa, como se procurasse uma estabilidade que jamais encontra. Cada vez as suas inclinações são maiores e dir-se-á que vai tombar definitivamente, dum momento para o outro.

De quando em quando, as ondas apresentam-se muito mais altas do que o navio; vemo-las ao nosso lado e acima de nós como quem contempla, de baixo, uma grande muralha, e essa mole rugidora parece ir desmoronar-se sobre o barco, afundando-nos num segundo. E sempre, sempre, o uivo macabro do vento, cada vez mais forte. O furacão pulveriza a água na crista das ondas, lançando, depois, longas nuvens de poeira líquida, que invadem o navio, fustigando-nos violentamente o rosto, como se fossem saibro. Não se pode andar no convés. O vento arrasta-nos e atira-nos contra a amurada.





A bordo já tudo foi amarrado e no soalho estenderam-se ásperas telas para evitar que os passageiros escorreguem, ao caminhar agarrados às cordas. Mas isso é quase inútil. Quando o navio se inclina mais, parecendo deitar-se, de lado, sobre o mar, ouvem-se gritos de alucinação, surdos rumores e sucessivos estrondos.
São passageiros aterrorizados e são móveis que se desaparafusam e correm, entrechocando-se, no declive subitamente criado; é o piano que se volta e vai bater no grande espelho, partindo-o com enervantes estrépitos. E, algures, algo tomba, pesadamente, como numa cisterna com eco.

No jardim de inverno, as longas cadeiras de repouso, que, com suas seis pernas, pareciam aptas a resistir ao trágico balanço, disparam também, como os móveis, umas fecham-se por si próprias, outras despedaçam-se, lançando violentamente os ocupantes ao chão.
Vários passageiros ficam feridos. Muitos deles já estavam doentes, com convulsões do estômago, desde o princípio do tufão; tinham, porém, abandonado os camarotes, receando que, no caso de naufrágio, estando eles lá metidos, não se pudessem salvar.

Com andamento grotesco, que outro não permitem as inclinações do barco, várias mulheres são conduzidas à enfermaria. E de entre os japoneses instalados na proa vêm constantes gritos, que o vento logo abafa. Vemos passar um homem numa maca, logo um segundo amparado por enfermeiros. O primeiro fracturou uma perna, e do outro o sangue escorre-lhe da cabeça.





Aproxima-se a noite e a inferneira prossegue. As vagas apresentam-se mais sombrias, mais trágicas, na sua batalha imensa e inútil. E o rugido aéreo continua satanicamente.
Poucos descem para jantar. Quase todos estão de olhos fixos no mar e de ouvidos captando a ária sinistra, à espera do que pode acontecer, do que eles pensam que pode acontecer dum instante para o outro.

Às vezes, o navio eleva-se tanto que nos falta o ar. E dir-se-á que o próprio barco deixou de respirar perante a incerteza do seu destino imediato, como se receasse não poder escapar desta ou daquela onda que, de súbito, o ergue no seu dorso e logo o deixa cair no abismo.

Assim vivemos a noite, até que a fadiga nos venceu. O homem habitua-se a tudo e nós acabamos por adormecer. De manhã, já o tufão ia longe. Tínhamos saído, enfim, do “Mar de Iocoama”. Estávamos já distantes do Japão, mundo de estranhas e contraditórias imagens que, provavelmente, a nossa vida não permitirá que voltemos a ver. Sayonara!"
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Fonte: Ferreira de Castro - A Volta ao Mundo (3.º vol., de um total de 3 - Livraria Editora Guimarães & C.ª - Lisboa - Portugal - Ano de 1952.

Ver anteriores postagens de "A Volta ao Mundo":
 
(1) No cemitério dos Parsis, em Bombaim, Índia: aqui
(2) Encontro com as Gueixas, no Japão: aqui
 

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