Rei D. João VI (Queluz 1767- Lisboa 1826) |
Sua Majestade fora a Belém [Lisboa] comer uma merenda. Era nos primeiros dias
de Março [de 1826]. Quando voltou a palácio achou-se, à noite, mal – cãibras,
sintomas de epilepsia. Vieram médicos: o barão de Alvaiázere e o valido
cirurgião Aguiar.
No dia seguinte, o estado do enfermo piorou. E o rei
decidiu-se a despir de si o pesado encargo do governo.
A 7, a Gazeta publicava o
decreto nomeando a regência, presidida pela infanta D. Isabel Maria, cuja bondade
merecia as graças particulares do infeliz pai. Esta minha imperial e real
determinação, afirmava o decreto do dia 6, regulará também para o caso em que Deus
seja servido chamar-me à sua santa glória, enquanto o legítimo herdeiro e sucessor
desta coroa não der as suas providências…
Mas quem era esse legítimo herdeiro?
D. Pedro, o brasileiro?
D. Miguel, no seu desterro de Viena?
Não o dizia o rei moribundo, que toda a vida
se achara indeciso, e acabava como tinha existido, sem uma afirmação de vontade,
entre flatos, na impotência de uma morte oportuna.
D. João VI no Brasil (ano de 1808) |
Em Lisboa corriam os boatos mais extravagantes.
O velho imperador sem império, rei de dois mundos já reduzidos ao que ele
chamava o seu canapé da Europa, massa humana estendida num leito, era como um valo
ou barreira que represava a torrente de ambições e fúrias soltas ou mal contidas
em 1820, em 1823, em 1824.
O caos de conflitos dinásticos, religiosos, políticos, que a fome universal
acirrara, ia reaparecer à luz do dia — tão depressa o caixão do imperador-rei
terminasse a viagem mortuária, do paço ao carneiro de S. Vicente de Fora.
Logo que a notícia da doença se propagou, e, mais ainda, quando apareceu
o decreto do dia 6, correu uma opinião forte. D. João VI tinha sido envenenado.
A peçonha fora propinada nas laranjas da merenda de Belém; embora o dessem por vivo,
era cadáver quando saiu o decreto.
Conservavam-no para enganar, para preparar
melhor os ânimos. Mas quem era o autor de tamanhos crimes?
A rainha [Carlota Joaquina], diziam os constitucionais de então.
Os constitucionais, diziam os absolutistas apostólicos.
Entretanto a
rainha era esbulhada da regência, e, se tramara o feito, saía-se duas vezes mal
— por isto, e porque à indecisão do decreto responderam o consenso geral e os regentes proclamando rei de Portugal o brasileiro [D. Pedro,
primeiro imperador do Brasil].
D. João VI regressa do Brasil a Portugal (Lisboa, ano de 1821) |
No dia 10 pela tarde morreu o rei, oficial ou realmente. Houve sentimento e lágrimas, porque, na sua moleza insípida,
era bom; sobretudo porque deixava depois de si um vácuo, uma sombra povoada de medos
das inevitáveis catástrofes amontoadas e iminentes.
Este susto agravava a maledicência geral. Ninguém já punha em dúvida a
causa da morte do rei. Os boatos eram positivas certezas — de que o parecer dos médicos
depois da autópsia concluiria pelo envenenamento.
Em tudo se achavam provas. Os absolutistas afirmavam cerradamente que
o cozinheiro Caetano fora convidado pelos constitucionais, e que, por se recusar, morrera com o veneno destinado para o rei: com efeito, o cozinheiro caíra de
repente.
Por outro lado, atribuíam-se confissões graves ao barão de Alvaiázere,
que também morrera logo; e o cirurgião Aguiar, sobre quem recaíam as acusações de ter propinado o veneno dos pedreiros-livres,
o cirurgião valido que fora brindado com um posto na diplomacia, morria também,
assassinado segundo uns, suicida na opinião dos mais — devorado pelos remorsos
do crime praticado contra o seu benfeitor!
Muita gente dizia ter lido cartas em que de Lisboa se anunciava a
doença, a morte certa do rei, bastantes dias antes da merenda de Belém.
Alegoria às virtudes de D. João VI (quadro de Domingos Sequeira) |
Se D. João VI morreu ou não envenenado, nem se sabe, nem importa. O que
vale é o facto da opinião geral sobre o caso; e essa opinião acreditava num crime.
Os vómitos e delíquios do imperador-rei, o cortejo dos cadáveres com que o seu corpo era metido no túmulo,
faziam de um crime o intróito da história dos longos crimes da sua sucessão.
A tragédia portuguesa começava, e o travo da peçonha acirrava os ânimos
prontos para um combate inevitável.
A regência, e todos, tinham reconhecido como rei D. Pedro IV [Pedro
I do Brasil]; mas com a certeza de que esse acto era uma pura formalidade,
um incidente sem alcance, um preito, apenas, dado à doutrina da hereditariedade
e ao direito da primogenitura.
Imperador no Brasil, D. Pedro não podia ser rei em Portugal: havia apenas
um ano que se assinara o tratado da separação redigido pelo inglês Stuart, e sabia-se
que por coisa alguma a Inglaterra consentiria na reunião dos dois estados
[Portugal e Brasil].
D.
Pedro teria de abdicar por força; e em quem, se não no infante D. Miguel, seu irmão? (…)
Tudo
se faria em boa paz, e os medos gerais provar-se-iam infundados.
Ingénua
ilusão!
Para além das questões formais, havia, no fundo, um duelo inevitável. (..)
Só [seriam de esperar] o ferro, o fogo, o canhão, o punhal, a miséria, e um cataclismo
final que terminasse pela morte de um dos contendores. (*)
(*) - Oliveira Martins - Portugal Contemporâneo - Tomo I - 3.ª edição - Pgs.1-5 - Livraria de António Maria Pereira (Editor) - Rua Augusta, 50-54, Lisboa (Ano de 1895)
[Texto actualizado pela Torre da História Ibérica]
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