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"Existia, no ano da graça de 1845, nesses anos de abundância e de paz em que todos os dotes da inteligência, do talento, da beleza e da fortuna aureolavam a França, uma bela e jovem mulher dotada da mais encantadora figura, cuja simples presença fazia despertar admiração em todo aquele que, ao vê-la pela vez primeira, não lhe conhecia o nome nem a profissão.
Nela se conjugavam, da forma mais natural, o olhar inocente, os modos provocantes, o andar simultaneamente petulante e honesto da mulher da mais alta sociedade. Tinha um ar grave, o seu sorriso era senhoril, e só de vê-la caminhar, poder-se-ia dizer o que um dia se disse de uma dama da corte: “Evidentemente, se não é duquesa, é uma mulher de vida fácil.” Ai! Esta não era duquesa.
De humilde nascimento, e com os dezoito anos que então teria, precisava, na verdade, de ser bem atraente para subir tão alto e com tanta facilidade.
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Recordo-me de a ter encontrado um dia, pela primeira vez, no abominável átrio de um teatro de Boulevard, mal iluminado e repleto dessa multidão barulhenta que geralmente aprecia os melodramas de sensação. Viam-se ali mais blusas que casacas, mais gorros do que chapéus de plumas, e mais casacos coçados do que fatos novos.
Ali falava-se de tudo, de arte dramática e de batatas fritas; das peças do Ginásio e do pão-de-ló do Ginásio. Pois quando esta mulher apareceu à entrada daquele lugar estranho, o brilho dos seus olhos como que impregnou de graça tanta coisa ridícula, apenas com o poder do seu olhar.
Pisava aquele soalho lamacento como se, na verdade, atravessasse o Boulevard num dia chuvoso; erguia a saia instintivamente, para não tocar naquela lama seca, e sem pretender mostrar – para quê? – o seu pé, que rematava uma perna bem torneada coberta por meia de seda de ponto aberto, miudinho.
No conjunto, a sua toilette coadunava-se bem com aquele talhe flexível e jovem; o rosto, dum belo oval, um pouco pálido, justificava a graça que ela derramava em redor como um suave perfume.
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Entrou, pois, e atravessou, de cabeça erguida, por entre aquela multidão assombrada.
Eu e Liszt ficamos muito surpreendidos ao vê-la sentar-se familiarmente no banco onde estávamos, pois nunca nenhum de nós lhe tinha falado.
Mulher espirituosa, de gosto apurado e de bom senso, dirigiu-se logo ao grande artista, dizendo-lhe que o ouvira havia pouco e que a sua música a deixara extasiada.
Ele, entretanto, como esses instrumentos sonoros sensíveis ao primeiro sopro da brisa de Maio, escutava, enlevado, aquela bela linguagem cheia de ideias, aquela língua sonora, eloquente e sonhadora ao mesmo tempo.
Com esse instinto maravilhoso de que é dotado, e essa grande prática das mais altas esferas sociais, ele perguntava a si próprio quem seria aquela mulher desconhecida, de modos tão familiares e tão nobres, que se lhe dirigia assim inopinadamente e que, logo após trocarem as primeiras palavras, o tratava com certa altivez, como se lhe tivesse sido apresentado em Londres, nas salas da rainha ou da duquesa de Sutherland.
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Entretanto, tinham ecoado na sala as três pancadas solenes do contra-regra, e o foyer esvaziara-se de toda aquela chusma de espectadores e críticos.
A desconhecida ficara só connosco. Aproximara-se mesmo do fogo e estendera os pés tiritantes na direcção das achas ardentes, de forma que a podíamos apreciar à nossa vontade, desde as pregas bordadas da saia de baixo aos caracóis do cabelo negro.
A sua mão enluvada mais parecia uma pintura; o seu lenço era maravilhosamente ornado de fina renda; nas orelhas ostentava duas pérolas do oriente capazes de causar inveja a uma rainha. Trazia todos esses pequenos requintes de elegância como se tivesse nascido entre sedas e veludos, sob qualquer tecto dourado dos bairros elegantes, com uma coroa sobre a cabeça e um mundo de aduladores a seus pés.
Assim, o seu porte correspondia a linguagem, o seu pensamento ao sorriso, a sua toilette à pessoa, e em vão se procuraria nas mais altas camadas sociais uma criatura que estivesse em mais bela e mais completa harmonia com a sua personalidade, os seus hábitos e as suas aliciantes conversas.
Entretanto Liszt, muito espantado por encontrar tal maravilha em semelhante lugar, entregava-se inteiramente à sua fantasia. Ele não é apenas um grande artista, mas também um homem eloquente. Sabe falar às mulheres, passando como elas de uma ideia à outra, e escolhendo as mais opostas.
Adora o paradoxo, conversa em tom sério, ou burlesco, e ser-me-ia impossível dizer com que arte, com que tacto, com que gosto infinito ele percorreu, com essa mulher cujo nome não conhecia, todas as gamas vulgares e todos os floreios elegantes da conversação quotidiana.
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(…) Passou esse Inverno e depois o Verão, e, no Outono seguinte outra vez, mas então em todo o esplendor de um espectáculo de benefício, em plena ópera, vimos de súbito abrir-se, com estrondo, um dos camarotes do proscénio, e aparecer-nos na frente, com um ramalhete na mão, essa mesma beleza que avistáramos no Boulevard.
Era ela!
Mas, nessa noite, o seu vestuário constituía o expoente máximo da moda feminina, e brilhavam nela todos os esplendores da conquista.
O seu penteado era primoroso, e nos belos cabelos viam-se diamantes e flores misturados com essa graça estudada que lhes dava o movimento e a vida; no colo e nos braços nus ostentava colares, pulseiras e esmeraldas.
Na mão segurava um ramalhete: de que cor? Não me seria possível dizê-lo; é necessário possuir olhos de mancebo e imaginação de criança para distinguir a cor verdadeira de uma flor sobre a qual se debruça um rosto formoso.
Na nossa idade, apenas atentamos na beleza da face e no brilho do olhar, pondo-se de parte os acessórios; e se, por acaso, nos entretemos a tirar consequências, tiramo-las da própria pessoa, o que, na verdade, já nos dá bastante que fazer. (…)"
.A Dama das Camélias - Alexandre Dumas Filho (1824-1895) - França.
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