sábado, 22 de maio de 2010

Crise e Aparências...

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"(...) Temos "benfeitores", sem obra social que se conheça, mas cujas Fundações o Estado ou o Governo cumulam de gentilezas e facilidades.
Temos respeitados "empresários", cuja fortuna começou no desvio de dinheiros europeus e acabou nas offshores do costume, que o poder distingue e apoia.
Temos "produtores" artísticos que só produzem quando subsidiados, que a crítica venera e o público despreza.
Temos "agricultores" que trocaram os tractores por Mercedes topo-de-gama e as culturas tradicionais por regadios de golfe.
Temos uma quantidade de "mestres" e até professores universitários formados em Universidades de vão de escada e agora até um rol de "doutores enfermeiros", reivindicando a equiparação salarial correspondente ao seu estatuto "académico".

E o que tem tudo isto a ver com a crise financeira que vivemos?
Nada ou tudo.
Depende da perspectiva com que olhamos as coisas: um país que se contenta com as aparências, que toma por genuíno o que não passa de oportunismo, que não escrutina o mérito nem questiona socialmente os pantomineiros, está condenado ao fracasso.
Na economia, como no resto.

Tal como na Grécia, o défice público e a dívida acumulada pelo Estado são o resultado directo de anos a fio de cedência a aparências, facilidades, reivindicações demagógicas e apoios não justificados.
Acham que alguém aprendeu a lição?
Não: leiam os blogues ou os comentários dos leitores de jornais - "eles", os sucessivos governos, é que nos desgovernaram; "nós", o bom povo, nada fizemos para merecer esta catástrofe.
É verdade, sim, que eles nos desgovernaram, mas em obediência à vontade do bom povo e porque ceder à demagogia e à facilidade vale muitos votos.

O enfermeiros querem ser doutores?
O Governo cede.
Os professores querem ser todos classificados com "muito bom"?
A oposição aplaude e o Governo rende-se.
O Ministério Público quer ter o sagrado direito de trabalhar sem prazos e os venerandos conselheiros do Supremo querem-no limpar de processos, dificultando a possibilidade de recurso?
O Governo concorda.
Os militares, os polícias, os bombeiros, querem o "legítimo" direito de receber um subsídio de risco por fazerem aquilo para que foram contratados e treinados?
O Governo acha justo.
O dr. Madail quer dez novos estádios para um Europeu de futebol que até o Presidente Sampaio afirmou ser "um desígnio nacional"?
O país festeja - e já se candidata a um Mundial e suspira por uns Jogos Olímpicos.

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(...) A casa está a arder mas há quem ainda não tenha percebido.
Na semana passada, li neste jornal um extraordinário texto em que alguém tentava explicar que essa história do défice é uma invenção dos economistas e que o combate ao défice é um combate contra a economia - a velha tese de que "há mais vida para além do défice", essa fabulosa verdade política que nos trouxe até onde estamos.

Chorem agora Granada caída para os sitiantes:
sem educar, sem seleccionar, sem premiar o mérito, sem denunciar os falsificadores, sem produzir, sem conseguir competir numa economia global, vivendo de subsídios à preguiça e de dívidas acumuladas, que mais vida tínhamos a esperar?" (*)
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(*) - Miguel Sousa Tavares – Uma Vida de Aparências - Expresso – Lisboa – 15 de Maio de 2010
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