quarta-feira, 5 de maio de 2021

"Gil Eannes" - O "Navio-Mãe da Frota Branca" resistiu à ingratidão humana e salvou-se. Mora agora em Viana do Castelo e pode ser visitado.



 
Há perto de quarenta anos, na década de 1980, o outrora magnífico Gil Eannes jazia como podem ver acima, ancorado diante da cidade de Lisboa.

Tinha andado errante e desprezado, de sítio em sítio, sem préstimo que se visse, aparentemente condenado a um fim indigno da admirável carreira que construíra em mares longínquos - entre gelos mortíferos, tempestades tropicais e gente remota


 
O Gil Eannes caía literalmente aos pedaços, enferrujando centímetro a centímetro as suas insígnias, o seu casco lendário e os seus interiores, que tinham salvado vidas e abrigado sonhos.

Foi sendo empurrado de porto em porto como um fardo inútil e incómodo até se imobilizar no Cais da Rocha, onde o venderam, para abate, à empresa Baptista & Irmãos, Lda.

O Gil Eannes, exausto, estava, de facto, à beira do fim, sentenciado a desaparecer de vez sob a investida das máquinas trituradoras dos sucateiros…


O Gil Eannes actual (ancorado no porto de Viana do Castelo - Portugal) (1)
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Até que ocorreu um milagre, que ficou a dever-se à boa memória e à sensibilidade de algumas pessoas.
O navio estava já em Alhos Vedros quando a Comissão Pró Gil Eannes o foi buscar para ser rebocado até aos estaleiros de Viana do Castelo, no Norte de Portugal, onde tinha nascido em 1955.

Aí o recuperaram, milímetro a milímetro, peça a peça, espaço a espaço. Insuflaram-lhe a vida antiga, tornando-o outra vez altivo e acolhedor como fora dantes.

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O Gil Eannes actual (ancorado no porto de Viana do Castelo - Portugal) (2)
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A Comissão deu entretanto lugar à Fundação Gil Eannes, actual proprietária do navio.

E este, ancorado no antigo porto comercial de Viana do Castelo, tornou-se num Museu flutuante, que abriu as portas ao público em Agosto de 1998 (pode ser visitado nos horários que a Fundação publicita - actualmente com as condicionantes impostas pela pandemia).

As antigas enfermarias de que o Gil Eannes dispunha foram recuperadas por forma a poderem transformar-se numa Pousada da Juventude, com 65 camas disponíveis e uma acolhedora sala de convívio.

Gil Eannes actual (ancorado no porto de Viana do Castelo - Portugal) (3)

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Um Pouco de História
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O Gil Eannes foi construído nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (Portugal).

Pronto em 1955, constituiu sem dúvida o maior desafio que até então se colocara à empresa desde o início da sua actividade, onze anos antes.

Foi projectado pelo Eng.º Vasco Taborda Ferreira para ser um navio-hospital de apoio à frota bacalhoeira portuguesa que operava nos distantes mares do Norte, nas águas da Gronelândia e da Terra Nova.

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Casa do leme (1)


O Gil Eannes, na sua primeira viagem (1955), iria assistir uma frota pesqueira de 70 unidades, com um total de tripulações que ultrapassava os 5000 homens.

Repetiria a missão, com imenso mérito, nos 18 anos seguintes, acabando por tornar-se conhecido, entre os que apoiava, pela gloriosa e significativa designação de Navio-Mãe da Frota Branca.

Também lhe chamavam a Misericórdia do Mar - e m
uito justificadamente, tais eram as condições de indizíveis dificuldades impostas aos nossos pescadores nessas águas por vezes fatais.


Casa do leme (2)

O Gil Eannes era, pois, um hospital flutuante. Mas não se reduzia a isso, como veremos.

Tinha um comprimento total de 98,40 metros, uma boca de 13,70 m e um calado de 5,50 m.

Possuía dois motores, que lhe podiam dar uma velocidade de 14,3 nós.

Estava equipado com dispositivos contra incêndios, de que se destaca um sistema automático de inundação por meio de chuva, e um outro para alagamento dos porões de carga com gás carbónico, tudo associado a um equipamento de detecção de fumos.

Possuía ainda um sistema de ventilação bastante evoluído, com uma caldeira que permitia uma temperatura ambiente de 18º C.
O casco estava reforçado para a navegação em mares com gelo.

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Casa das máquinas - O coração do navio (1)

Composto por 3 pavimentos devidamente apetrechados para todas as situações hospitalares, a sua capacidade permitia-lhe receber, em condições de normalidade, até 70 doentes.

No primeiro pavimento estavam instalados os gabinetes de consulta e de radiologia, apetrechados com o material mais moderno da época.

Dispunha ainda de salas de espera e tratamento, câmara escura, enfermarias completamente isoladas para doentes infecto-contagiosos, camarotes para dois médicos, capelão e biblioteca.

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Casa das máquinas - O coração do navio (2)

No segundo pavimento ficavam uma enfermaria para oficiais, outra para doentes em observação, com os respectivos serviços sanitários, e a enfermaria geral com 40 camas separadas por divisórias,.

Havia largas janelas que davam a possibilidade aos doentes de assistirem dos seus leitos à celebração da missa.

Este pavimento dispunha também dos alojamentos dos enfermeiros, sala de curativos e gabinete do enfermeiro responsável.


Casa da rádio - TSF

No terceiro pavimento localizava-se o bloco operatório e de ortopedia, constituído por ampla sala de operações, apetrechada do necessário material, salas de desinfecção e esterilização, gabinete de agentes físicos e laboratório de análises.

Os três pavimentos ligavam-se por amplas escadas e elevador com maca para transporte de doentes.

Em eventual situação de emergência, a lotação do navio podia ser “esticada” até aos 320 doentes.


Consultório médico

O Gil Eannes dispunha de local de culto.

Para além da capela da enfermaria, possuía uma capelinha que abria a toda a largura da tolda, onde sobressaía um artístico painel a óleo, da autoria do pintor Domingos Rebelo, representando ao centro Nossa Senhora dos Mares e tendo aos lados um pescador e um grupo familiar.


Sala de operações

A assistência prestada pelo navio era magnífica e totalmente gratuita.

Se o enfermo fosse pescador de um navio de pesca à linha, recebia como pagamento, durante o período de internamento, uma quantia calculada segundo a média capturada pelos companheiros do navio a que pertencia.

Os cuidados humanitários eram prestados aos pescadores (e demais tripulantes) de qualquer navio que actuasse naquelas águas da Terra Nova e da Gronelândia, fossem eles espanhóis, franceses, italianos, alemães, russos, ingleses ou das Ilhas Faroé…


Sala de esterilização

Embora concebido e preparado como navio-hospital, o Gil Eannes foi “pau para toda a obra”.

Actuou como navio-capitania (com um oficial da Marinha de Guerra a bordo, o qual, no desempenho de funções de Capitão do Porto, tratava dos casos de (in)disciplina relativos a todas as tripulações da frota pesqueira nacional).

A vida a bordo dos navios da frota pesqueira era muito difícil, quase sempre penosa.

Os momentos de lazer – nas poucas horas que sobravam entre o sono, a pesca e o amanho do bacalhau – passavam-se vendo filmes e jogando as cartas.

Uma rara distracção era a visita a St. John’s, onde as populações terranovenses acarinhavam esses sacrificados do mar que eram os nossos pescadores.


Cozinha

O Gil Eannes funcionou também como navio-correio, recebendo e distribuindo as correspondências e encomendas dos homens da frota.

Em cada campanha manuseava-se a bordo cerca de um milhar de encomendas recebidas em Lisboa para os navios e suas tripulações e encaminhavam-se de setenta a oitenta mil cartas trocadas entre os pescadores e seus familiares.

Por vezes juntavam-se a bordo, para serem seladas, três a quatro mil cartas, tornando-se necessários bastantes voluntários para ajudar o tripulante encarregado de tal serviço.


Padaria

O Gil foi, ainda, navio-abastecedor.

Os serviços de abastecimento aos navios da frota pesqueira eram efectuados sob as mais variadas condições de tempo e mar.

Durante a campanha distribuíam-se por esses navios cerca de 2000 quilos de isco congelado. Também se forneciam 400 toneladas de água potável e 250 toneladas de combustível.

Recebiam-se em terra e entregavam-se aos navios, nos seus locais de pesca, cerca de 90 toneladas de mantimentos e largas centenas de redes e malhas.

Desde equipamentos e farmácias, desde reparações eléctricas até reparações electrónicas – de tudo se fazia para facilitar a vida aos pescadores.


Sala de reuniões

Outras meritórias funções do Gil Eannes: trabalhou como rebocador, salva-vidas e navio quebra-gelos. Quando um dóri ficava encalhado no gelo, o Gil seguia para o local, quebrando o gelo com o seu casco de aço, e abria o sulco de retorno ao barco sinistrado.

Merece destaque a assistência prestada ao navio Rio Antuã, que metia água pela proa. O Gil Eannes navegou cerca de 14 horas à frente do barco sinistrado, quebrando com a força das suas duas máquinas a muralha de gelo que lhe surgia pela frente e permitindo assim, em condições excepcionais, que o Rio Antuã chegasse a St. John’s sem novidade de maior.

Por tudo isto lhe chamavam, como acima dissemos, o Navio-Mãe da Frota Branca ou a Misericórdia do Mar.


Tempos de outrora - O Gil Eannes em alto-mar


Mas o Gil Eannes foi envelhecendo… Os tempos tornaram-se outros, com aquisições directas de bacalhau à Islândia e à Noruega.

A derradeira viagem do navio à Terra Nova ocorreu em 1973.

Ainda nesse ano fez uma viagem diplomática ao Brasil.

Mais tarde rumaria à Noruega para de lá trazer bacalhau fresco nas suas câmaras de frio.

Também ajudou a trazer refugiados de Angola, após a descolonização…

Depois foi sendo empurrado de cais em cais, como um objecto inútil.
Até que foi salvo, para nosso contentamento, por gente de engenho e coração...

O Gil Eannes resistiu!

Tempos de agora - O Gil Eannes ao anoitecer de Viana do Castelo


O histórico navio está aberto a visitas no porto de Viana do Castelo. Pode consultar os horários e obter muito mais informações no site da Fundação Gil Eannes - ver aqui.

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Fontes do texto:

Mário Esteves (comandante do Gil Eannes entre 1959 e 1971)
Brito Ribeiro
Alberto Abreu
Fundação "Gil Eanes"

Fotos:
Clube de Oficiais da Marinha Mercante
Pedro Prata
Rosa Pereira
Brito Ribeiro
Dias dos Reis

1 comentário:

Anónimo disse...

Foi pena não terem mencionado a intervenção da Associação S.O.S. "Gil Eannes" sem a qual não teria sido possível resgatar esse histórico navio. Esta intervenção pode ser verificada na “Net” no “site” - https://youtu.be/FnfPF4aXA7A
Aí poderão conhecer alguns dos intervenientes que lutaram contra o mundo para impedir que o Gil Eannes fosse reduzido a sucata. Destes destaco o Cte. Rocha Ramos, o Cte. Mário Esteves e o jornalista Diniz Nazaré.