sábado, 21 de agosto de 2021

Não se peça a Deus o que nem Ele consegue fazer (sem que o pedinte cumpra a sua parte)...




Baltasar era homem piedoso e bom, de fé profunda e inabalável em Deus e em toda a Sua corte celestial. Rezava diariamente com fervor, nunca pedindo nada à Entidade Superior: a vida corria-lhe tão de feição – nos negócios, no amor, em tudo o resto – que não precisava de pedir: rezava só para agradecer aquilo que quotidianamente recebia.

Porém, um dia, a sua vida sofreu uma torção violenta e tudo lhe passou a correr mal. O sócio principal nos negócios praticou um desfalque e fugiu para o estrangeiro, deixando as empresas crivadas de dívidas, irremediavelmente falidas. A mulher, até ali esposa amantíssima e dedicada (supunha ele) fugiu também (com o tal sócio) e levou com ela a filha que era a menina dos olhos de Baltasar.

Caído em desgraça, ele fez tudo quanto estava ao seu alcance para recuperar a situação anterior, pelo menos em termos materiais. Mas tudo foi baldado: tinha os credores à perna, implacáveis, reclamando patrimónios, ameaçando com tribunais e até com vinganças físicas.



Baltasar tinha continuado a rezar todos os dias, e, como de costume, jamais pedia nada a Deus. Mas as coisas não melhoravam. Até que teve a ideia de rogar pela primeira vez a salvação divina: rojando-se nas lajes do templo, começou a pedir a Deus que o contemplasse com o primeiro prémio da lotaria, soma que decerto lhe proporcionaria a resolução dos seus problemas financeiros.

Passou a seguir com ansiedade os sorteios semanais. Mas nunca - nunca! - se viu premiado. Ao fim de alguns meses, desiludido e triste, resolveu queixar-se numa das idas ao templo. Estava muito zangado com Deus. Sozinho, ajoelhado, fez ecoar em voz alta, pelas lajes e pelas paredes graníticas, num tom dramático, toda a revolta que o consumia.

Como era possível que Deus – Deus a quem ele tanto rezara, Deus a quem ele sempre procurara servir da melhor forma que sabia – como era possível que Ele não lhe escutasse os apelos? Era a primeira vez que pedia alguma coisa, e logo Deus lhe falhara em toda a linha. Não teria Deus afinal tanto poder como Lhe era atribuído pelos sacerdotes, pelos crentes, pela Madre Teresa de Calcutá e pelos filmes de Hollywood? Nem um miserável primeiro prémio de lotaria Ele conseguia arranjar para um crente tão exemplar?

Ficaram a ecoar no templo as últimas e desesperadas perguntas do infeliz. Até que, quando ele, quase já sem fé, se aprestava para retornar ao casebre onde presentemente vivia, lhe chegou aos ouvidos, vinda das sombras, uma voz grave, profunda e um tanto indignada – a própria voz de Deus: Baltasar, ó homem, por amor de Mim, dá-me ao menos uma chance: começa por comprar o bilhete de lotaria!



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