quinta-feira, 2 de julho de 2020

Quem - ou o que - seria "o polvo" do Padre António Vieira?



O que disse, sobre este inteligentíssimo e escorregadio cefalópode, o "nosso" (português e brasileiro) Padre António Vieira?


Disse coisas como estas:

"(...) Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo Ambrósio.

O polvo, com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge;

com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela;

com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão.

E debaixo desta aparência tão modesta,
ou desta hipocrisia tão santa,

testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja, latina e grega, que o dito polvo é o maior traidor do mar.




Consiste esta traição do polvo primeiramente em as cores a que está pegado.

As cores, que no camaleão são gala,
no polvo são malícia;

as figuras, que em Proteu são fábula,
no polvo são verdade e artifício.

Se está nos limos, faz-se vestir ou pintar das mesmas cores - de todas aquelas verde;

se está na areia, faz-se branco;

se está no lodo, faz-se pardo;

e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra.





E daqui que sucede?

Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente e fá-lo prisioneiro.

Fizera mais Judas?
Não fizera mais, porque não fez tanto (...)" (*)



(*) - O Polvo, de Padre António Vieira (n. Portugal, 1608 - f. Brasil, 1697)
Extracto do Sermão de Santo António aos Peixes.

....................

Quem era (ou "o que" poderia ser) este polvo - tão dissimulado e sinistro - a que se refere António Vieira?

Ontem, como hoje ou em qualquer dia, poderia caber em abundantes gestos e personagens. Até mesmo em figuras (e figurões) que avistamos - ou com quem somos forçados a conviver - nos meandros inevitáveis do nosso quotidiano.

Pensem sobretudo naquele "não ter osso nem espinha", naquela "hipocrisia tão santa", naquele transformismo das aparências, naquele salto repentino de emboscada, de "dentro do seu próprio engano"...

Quantos conhecemos nós assim?
É verdade que alguns não chegam a mudar propriamente de cor. Mas trocam lepidamente de convicções, de casacas e de lealdades na mira dos cobres e dos privilégios por que aceitam vender-se.

Mas, enfim, atendendo àquele tempo e àquele espaço - o tempo e o espaço de António Vieira - diz-se que, com a sua fala inspirada acerca do "polvo", ele aludia especialmente, e por amarga experiência própria, à temível e devastadora Inquisição...



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