sábado, 30 de julho de 2022

"A Volta ao Mundo", de Ferreira de Castro - "No cemitério dos Parsis, em Bombaim, Índia"






José Maria Ferreira de Castro, nascido em Ossela, Oliveira de Azeméis (Portugal), em 24 de Maio de 1898, foi um dos mais ilustres escritores portugueses. Faleceu na cidade do Porto no dia 29 de Junho de 1974.

Emigrado para Belém do Pará (Brasil) com a idade de 12 anos, sofreria na carne e no espírito, durante vários anos, a dura experiência do trabalho na floresta amazónica, em pleno seringal Paraíso.

Mas foi aí que pôde recolher material para um livro que, bastante mais tarde, o tornaria conhecido e lhe traria a consagração (A Selva). Saiba mais sobre o grande escritor: aqui.



Busto de Ferreira de Castro, em Manaus, Amazonas, Brasil


Às vésperas da 2.ª Guerra Mundial, Ferreira de Castro embarcou, com a esposa, para uma peregrinação ao redor do planeta, cujas peripécias revelaria na obra A Volta ao Mundo.

Passando por Grécia, Turquia, Iraque, Índia, Birmânia, Malaca, Bornéu, Sião, Indochina, China, Japão, Honolulu e Estados Unidos da América, deixou sobre tais paragens centenas de páginas memoráveis.

Partiu do rio Tejo, em Lisboa, no navio Saturnia, a primeira das vinte embarcações em que tomaria lugar, nos meses seguintes, para completar a fascinante viagem. E fixou, logo ali, as primeiras impressões:
 
O navio larga às três da tarde. No cais, os nossos amigos acenam-nos os últimos adeuses. E, por detrás, nas suas sete colinas, espairece ao sol a velha cidade de Lisboa.

Outrora, estes outeiros, vestidos de policromo casario, viam partir os homens em frágeis caravelas, rumo ao desconhecido, que os oceanos eram, para eles, tão fabulosos como o foram, um dia, para os nossos olhos de menino.

Nós vamos ver, agora, o planeta que eles devassaram em todas as direcções, há quase cinco séculos, e, para se iniciar a volta ao Mundo, bom é o porto de onde largaram aqueles que o Mundo andaram a descobrir.

O Saturnia desce, lentamente, o Tejo, e, à direita, entre as velas do rio, fulge a Torre de Belém, símbolo do país das grandes viagens. Mais abaixo, a luz vespertina enche de colorido as vivendas do Estoril, enquanto, lá ao fundo, na serra de Sintra, irisada bruma dá ao castelo um aspecto fantástico (...)

Publicamos, seguidamente, um dos mais impressionantes relatos incluídos nesta obra do escritor:





No cemitério dos Parsis, em Bombaim, Índia

“A maior curiosidade de Bombaim reside, porém, nas aves que devoram cadáveres humanos, em tácito acordo com a família dos mortos.

São abutres ao serviço de velha religião, banqueteando-se, diariamente, com os corpos dos Parsis, uma das muitas raças que vivem na Índia. Os abutres não passam, talvez, de 500, e os Parsis de 80 000.

Pequenos em número, uns e outros são poderosos em Bombaim, aqueles na morte, estes na vida.

Banqueiros, industriais, grandes comerciantes, os Parsis luzem boas gorduras entre uma população que é, quase toda ela, esquelética.

Por mor disso e ainda por um casaco que lhes desce até aos joelhos e uma espécie de mitra de oleado negro, salpicada de bolinhas brancas, eles distinguem-se de todos os outros transeuntes nas ruas de Bombaim.

Ricos e com opulentos interesses a defender, eram os principais colaboradores dos Ingleses.

Até há pouco, o movimento de libertação hindu mereceu-lhes indiferença e, por vezes, mesmo oposição. Eles estavam, comodamente, com o mais forte.

Ano após ano, Gandhi fatigou-se, em vão, lançando “apelos aos irmãos Parsis” para que lhe dessem o seu apoio. Mas só nos últimos tempos, quando viram a Inglaterra hesitar perante a insurreição latente, eles concederam alguma simpatia ao velho libertador.

De origem persa, os Parsis mantiveram, através dos séculos, uma das religiões da pátria perdida: a doutrina de Zoroastro, o Zaratustra lendário. São masdeístas e têm o culto do fogo (…).

Como em quase todas as religiões, os ritos funerários são os mais impressionantes do Masdeísmo.

Os Parsis consideram o fogo, a água e a terra elementos sagrados, que não devem ser conspurcados pela vil matéria humana.

Assim, para se desfazerem dos cadáveres da sua comunidade, eles usam singular processo: em vez de os entregar à terra ou ao fogo, entregam-nos aos abutres.

Os Parsis têm, mesmo, um sítio próprio para a macabra função, um sítio de nome belo – as Torres do Silêncio

Lugar vedado ao público, para visitá-lo é necessária autorização especial, que se concede poucas vezes e quase que exclusivamente a estrangeiros. Após várias formalidades, conseguimos obter essa regalia (…).


Uma das Torres do Silêncio

Fica a estranha necrópole em Malabar Hill, bairro luxuoso de Bombaim, situado sobre uma colina, ao fundo da cidade e próximo do mar.

Entre opulentas moradias burguesas, cercadas de parques, topa-se, de súbito, com um vasto jardim. De começo, vêem-se apenas árvores. Há, em seguida, uma porta, logo uma alameda e, mais além, a casa dos guardas (…).

Entre longas áleas, vários talhões arrelvados exibem palmeiras, acácias, arequeiras, muitas outras árvores.

Quase ocultos pela vegetação, divisam-se, ao fundo, os Dokmas – as Torres do Silêncio.

São cinco: uma destinada aos parsis ricos, três aos pobres e remediados, a outra aos suicidas.

Circulares e de fraca altura, estas fúnebres construções assemelham-se a minúsculas praças de touros. Cada torre tem uma só porta, que ninguém, salvo os sacerdotes, pode transpor.

Os próprios Parsis só a atravessam quando já são cadáveres.

Nas alamedas, há placas de ferro prevenindo: Stop here. Até as famílias dos mortos devem despedir-se deles aqui, no mesmo lugar em que estamos, a cinquenta metros das torres.

Olhamos as árvores. Belas acácias rubras, agora em flor, estão cobertas de abutres, uma espécie de urubus, negros, gordos, repugnantes, que dormitam com as asas negligentemente descaídas.

Todos os dias eles devoram três, quatro e mais cadáveres. Certos de que terão alimento, raramente saem do jardim. Quando os corpos humanos não bastam para todos eles, é-lhes fornecida carne podre, já que os Parsis não desejam ver emigrar estes seus preciosos colaboradores no culto de Zoroastro…


Parsis de Bombaim (1878)


O guarda mostra-nos uma miniatura, em gesso, das Torres do Silêncio, para que possamos saber como elas são interiormente e como se efectua a eliminação dos mortos.

Cada torre, que nenhum tecto cobre, apresenta, quase no cimo, um pavimento circular, afunilando-se, em declive suave, até um poço central.

Este pavimento divide-se em três secções concêntricas, onde se abrem os pavis, sucessivas cavidades destinadas aos cadáveres. A primeira secção, a maior, reservam-na aos homens; a segunda às mulheres e, às crianças, a terceira.

Bem lavado, bem penteado e envolto em pulcro tecido, leve como pluma e níveo como a neve, o cadáver é conduzido para o jardim, num cortejo em que todos vestem de branco: a família, os amigos, os sacerdotes e a própria padiola onde repousa o morto.

Sobre as árvores, os urubus estendem o pescoço depenado e movimentam levemente as asas para lhes quebrar a inacção. Mas não disparam logo; eles conhecem já de cor toda a cerimónia e sabem que o festim tarda ainda algum tempo.

A procissão funerária avança pela alameda central e detém-se junto do Templo do Fogo, que se ergue no meio do jardim.

Agora, os sacerdotes traçam misteriosos gestos e murmuram sagradas encomendações. Novamente os vivos se põem em marcha, levando o morto. Vinte passos adiante, está uma peanha de mármore, onde é colocada a padiola.

Aproxima-se o último momento. Os abutres sabem-no e aproximam-se também, voando de árvore em árvore, os olhos fixos na carne humana que lhes vai ser oferecida.

Para a família, o trânsito já findou. Aqui se despede do morto, porque os ritos não consentem que ela vá mais além.



Quatro servidores de Zoroastro pegam no cadáver e, com ele, avançam para a porta da torre correspondente à categoria social do falecido.

Lá dentro, depositam-no numa das cavidades e tiram-lhe o tecido branco que o envolve, deixando-o completamente nu às aves que hão-de devorá-lo.

O fúnebre silêncio é subitamente quebrado por um forte estrépito de asas; e centenas de abutres, descidos das árvores, pousam sobre as extremidades da torre.

Os quatro sacerdotes voltam a aparecer, cerrando a porta; os abutres, ao contrário, desaparecem, num rápido movimento de mergulho. Os quatro homens batem, então, as palmas e, a esse sinal, a família começa a entoar preces no jardim.

Entretanto, dentro da torre, principia a festa macabra. 

Nisto, descem do céu outros competidores, os corvos negros. Mas, mais fracos de corpo, eles sabem, dada a experiência de todos os dias, que serão perseguidos pelos abutres. Baixam, por isso, rapidamente e logo se retiram, para tornar a volver, para tornar a partir, levando no bico, de cada vez, o pedaço de carne humana que conseguiram conquistar.

Esta batalha das aves negras dura pouco tempo. Ao cabo de meia hora, minuto mais, minuto menos, os abutres saem da torre, num voo pesado. E começam, já tranquilos, a limpar o bico sobre as árvores.

Numa das cavidades da torre, recentemente cheia, há, agora, apenas um esqueleto. Ao lado, enfileiram-se outros, da véspera e da ante-véspera. Alguns dias quedarão ao sol, para perder as últimas impurezas da carne.

Depois, um dos quatro homens que fruem o privilégio de entrar nas torres calça luvas impermeáveis, pega em grandes tenazes e, agora os fémures e as tíbias, logo as costelas e o crânio, despenha todos os ossos no poço central. Ali, durante um período de seis a oito meses, o sol forte do Oriente calciná-los-á (…).

(…) Se não houvéssemos vindo aqui, se tivéssemos apenas lido a história destes ritos, julgaríamos que se tratava não de costume do nosso tempo e sim de antanho, costume perdido, como os ossos dos primeiros Parsis, na poeira dos séculos.

Mas não. Cá estão os abutres, dormitando sobre as acácias rubras e indiferentes aos nossos passos. Têm os olhos cerrados, a cabeça repelente encostada ao peito e dir-se-á que não vêem nem ouvem coisa alguma.

Subitamente, porém, agitam-se, distendem o pescoço e olham para a ponte de madeira…

O guarda que nos acompanha pede-nos desculpa e diz-nos que temos de sair imediatamente. Pelo túnel que há sob a estrada avança um grupo de indivíduos, todos de branco, o braço de um ligado ao de outro por uma faixa, branca também, segundo ordena o rito.

Os da frente conduzem um longo vulto inerme em posição horizontal…"


……………….

Fonte: Ferreira de Castro - A Volta ao Mundo (2.º vol., de um total de 3) - Livraria Editora Guimarães & C.ª - Lisboa - Portugal - Ano de 1952.



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