O
Estrangeiro e A Peste, romances complementares quanto ao significado, são dois
momentos capitais na obra de Camus.
Se O Estrangeiro termina em pleno absurdo,
A Peste conclui com a lúcida aceitação do destino humano.
Pelo
seu sentido humanista e por uma consumada arte literária, A Peste é considerada
uma das mais puras obras-primas do nosso tempo.
Na manhã de um dia 16 de abril dos anos de 1940, o doutor Bernard
Rieux sai do seu consultório e tropeça num rato morto. Este é o primeiro sinal
de uma epidemia de peste que em breve toma conta de toda a cidade de Orão, na
Argélia. Sujeita a quarentena, esta torna-se um território irrespirável e os
seus habitantes são conduzidos até estados de sofrimento, de loucura, mas
também de compaixão de proporções desmedidas.
Uma história arrebatadora sobre o horror, a sobrevivência e a resiliência do ser humano, A Peste é uma parábola de ressonância intemporal, um romance magistralmente construído, que, publicado originalmente em 1947, consagrou em definitivo Albert Camus como um dos autores fundamentais da literatura moderna.
Uma história arrebatadora sobre o horror, a sobrevivência e a resiliência do ser humano, A Peste é uma parábola de ressonância intemporal, um romance magistralmente construído, que, publicado originalmente em 1947, consagrou em definitivo Albert Camus como um dos autores fundamentais da literatura moderna.
A Peste é publicada em Portugal pela Editora Livros do Brasil. Os extractos abaixo transcritos pertencem a uma edição da década de 1960 (capa seguidamente reproduzida). O livro continua disponível na editora a um preço que ronda os 15 €.
Colecção Dois Mundos.
Páginas: 334.
LEITURA MUITO RECOMENDADA PELA TORRE.
“Os
curiosos acontecimentos que servem de assunto a esta história produziram-se em
194…, em Orão. Segundo a opinião geral, não estavam aí no seu devido lugar,
antes saíam um pouco do habitual.
À
primeira vista, Orão é, com efeito, uma cidade vulgar, que não passa de uma
prefeitura francesa na costa argelina.
A
própria cidade, confessemo-lo, é feia. Com o seu aspecto calmo, é preciso algum
tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades
comerciais em todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem
pombas, sem árvores e sem jardins, onde não se sente o bater de asas nem o
sussurro de folhas, uma cidade neutra, para dizer tudo? Apenas no céu se lê a
mudança das estações.
A Primavera só se anuncia pela qualidade do ar ou pelos
cestos de flores trazidos por rapazitos dos arredores: é uma Primavera que se
vende nos mercados. Durante o Verão, o sol incendeia as casas demasiado secas e
cobre as paredes de uma poeira cinzenta; então só é possível viver à sombra das
persianas corridas. No Outono, pelo contrário, é um dilúvio de lama.
Os
dias bonitos só vêm no Inverno. (…)
Na manhã do dia 16 de Abril, o doutor Bernard Rieux saiu do seu consultório
e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. Nesse momento, afastou o bicho
sem lhe prestar atenção e desceu a escada. Chegado à rua, porém, veio-lhe a
ideia de que esse rato não estava no seu lugar e voltou atrás para prevenir o
porteiro.
Perante a reacção do velho Michel, sentiu melhor o que a sua
descoberta tinha de insólito. A presença desse rato parecera-lhe apenas
estranha, enquanto que para o porteiro ela constituía um escândalo. A posição deste
último era, aliás, categórica: não havia ratos em casa. Por mais que o médico
lhe afirmasse que havia um no patamar do primeiro andar e, provavelmente,
morto, a convicção de Michel permanecia íntegra. Não havia ratos na casa, e
era, pois, provável que tivessem trazido aquele de fora. Em resumo, tratava-se
de uma partida.
Nessa
mesma noite, Bernard Rieux, de pé no corredor do edifício, procurava as chaves
antes de subir para sua casa, quando viu surgir do fundo obscuro do corredor um
rato enorme, de passo incerto e pelo molhado.
O animal parou, pareceu procurar
o equilíbrio, correu em direcção ao médico, parou de novo, deu uma volta sobre
si mesmo com um pequeno guincho e parou, por fim, deitando sangue pela boca
entreaberta. O médico contemplou-o um momento e subiu. (…)
No dia seguinte, 17 de Abril, às
oito horas, o porteiro deteve o médico e acusou três brincalhões de mau gosto
de haverem posto três ratos mortos no meio do corredor. Deviam tê-los apanhado
com grandes ratoeiras, pois estavam cheios de sangue. O porteiro ficara algum
tempo à porta, segurando os ratos pelas patas, esperando que os culpados se
traíssem por algum sarcasmo. Mas nada acontecera.
-
Ah – dizia Michel -, hei-de acabar por apanhá-los.
Intrigado,
Rieux decidiu começar a sua volta pelos bairros exteriores, onde habitavam os
mais pobres dos seus clientes. A recolha do lixo fazia-se aí muito mais tarde e
o automóvel, rolando ao longo das ruas direitas e poeirentas, roçava os
caixotes do lixo deixados à beira dos passeios. Numa rua que percorria assim, o
médico contou uma dúzia de ratos lançados sobre restos de legumes e trapos
sujos. (…)
Em todo o caso, foi mais ou menos
por esta época que os nossos concidadãos começaram a inquietar-se,
pois a partir do dia 18 as fábricas e os depósitos apareceram enxameados de
centenas de cadáveres de ratos.
Em alguns casos foi necessário acabar de matar
os bichos, cuja agonia era demasiado longa. Mas desde os bairros exteriores até
ao centro da cidade, por toda a parte onde o doutor Rieux passava, por toda a parte onde os nossos concidadãos se reuniam, os
ratos esperavam em montes, nos caixotes do lixo ou junto às sarjetas,
em longas filas.
A
imprensa da tarde ocupou-se do assunto a partir desse dia e perguntou se a
municipalidade se propunha ou não agir e que medidas de urgência tencionava
adoptar para proteger os seus munícipes dessa repugnante invasão.
A municipalidade
não se tinha proposto coisa nenhuma, mas começou por reunir em conselho para
deliberar.
Foi dada ordem ao serviço de luta contra os ratos para proceder à
sua recolha todas as manhãs, ao romper da alva. Acabada a recolha, dois carros
de serviço deviam conduzir os animais ao posto de incineração dos lixos a fim
de serem queimados.
Porém, nos dias que se seguiram a
situação agravou-se.
O número de roedores apanhados ia crescendo e a recolha
era cada manhã mais abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a
sair para morrerem em grupos. Das arrecadações, das caves, dos esgotos, subiam
em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e
morrer perto dos seres humanos.
À noite, nos corredores ou nas ruelas, ouviam-se
distintamente os seus guinchos de agonia. De manhã, nas ruas, encontravam-se
junto aos passeios, com uma pequena flor de sangue no focinho pontiagudo, uns
inchados e pútridos, outros rígidos e com os bigodes ainda hirtos.
Na
própria cidade, encontravam-se em pequenos montes, nos patamares e nos pátios.
Vinham também morrer isoladamente nos vestíbulos administrativos, nos recreios
das escolas, por vezes nos terraços dos cafés. Os nossos concidadãos,
estupefactos, encontravam-nos nos locais mais frequentados da cidade. A Praça
de Armas, as avenidas, o Passeio do Front-de-Mer apareciam conspurcados de
longe a longe.
Expurgada, ao amanhecer, dos animais mortos, a cidade voltava a
encontrá-los pouco a pouco, cada vez mais numerosos, durante o dia. Dir-se-ia que
a própria terra onde estavam plantadas as nossas casas se purgava dos seus
humores, que deixava subir à superfície furúnculos e podridões que, até aqui, a
minavam interiormente. (…)
As coisas foram tão longe que a Agência Ransdoc – todas as informações sobre
qualquer assunto – anunciou, na sua emissão radiofónica de informações
gratuitas, seis mil duzentos e trinta e um ratos apanhados e queimados, só no
dia 25.
Este número, que dava um sentido claro ao espectáculo quotidiano que a
cidade tinha perante os seus olhos, aumentou a agitação. Até então, as pessoas
tinham-se apenas queixado de um espectáculo um pouco repugnante.
Compreendia-se
agora que este fenómeno, de que não se podia avaliar a amplitude nem precisar a
origem, tinha qualquer coisa de ameaçador.
Só
o velho espanhol asmático continuava a esfregar as mãos e a repetir com uma
alegria senil: Eles saem, eles saem.”
Albert
Camus nasceu na Argélia, em Mondovi, província de Constantina, a 7 de Novembro
de 1913, e morreu num acidente de automóvel em Janeiro de 1960, ao regressar a
Paris de uma pequena digressão pela província.
Foram
difíceis as condições em que Albert Camus efectuou os seus estudos na
Universidade de Argel. Foi obrigado a recorrer a diversos empregos para custear
as despesas da vida de estudante: vendedor de acessórios de automóvel,
meteorologista, empregado num escritório, manga-de-alpaca na Prefeitura da
Polícia. Ao mesmo tempo entregava-se aos desportos e animava um grupo teatral, L’Équipe.
Licenciado
em Filosofia, a doença impediu-o de levar mais longe a carreira de professor.
Entrou para o jornalismo. Com a invasão da França ingressou na Resistência, e a
Libertação encontrou-o redactor do jornal Combat.
O
seu nome subira entretanto ao primeiro plano das Letras francesas e mundiais.
Em 1957 sobreveio a consagração do Prémio Nobel da Literatura.
A
sua obra é uma das mais influentes nas gerações do pós-guerra, tanto pelo
valor humanístico da sua crítica dos homens e da vida, como pelo brilho, pureza
e sobriedade do seu estilo.
Ancorada rijamente ao nosso tempo, está pois
destinada a ultrapassar os limites da época que a viu nascer.
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