segunda-feira, 19 de novembro de 2018

DA "CULTURA" EM PORTUGAL...


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“(…) Há um momento nas touradas em que o touro, muito ferido já pelas bandarilhas, o sangue a escorrer, cansado pelos cavalos e as capas, titubeia e parece ir desistir. Afasta-se para as tábuas. Cheira o céu.
Vêm os homens e incitam-no.
A multidão agita-se e delira com o sangue.

O touro sabe que vai morrer.
Só os imbecis podem pensar que os animais não sabem. Os empregados dos matadouros, profissionais da sensibilidade embaciada, conhecem o momento em que os animais "cheiram" a morte iminente.

Por desespero, coragem ou raiva (não é o mesmo?), o touro arremete pela última vez. Em Espanha morre. Aqui, neste país de maricas, é levado lá para fora para, como é que se diz? ah sim: ser abatido. A multidão retira-se humanamente, portuguesmente, de barriga cheia de cultura portuguesa, na tradição milenar à qual nenhuma piedade chegou.

(…) Os toureiros são corajosos, mas entram na arena sabendo que haverá sempre quem os safe, se não à primeira colhida, então à segunda. Às vezes aleijam-se a sério e às vezes morrem, o que talvez prove que os deuses da Antiguidade são justos, vingativos e amigos de todos os animais por igual.

Os touros, esses, não têm ninguém que os vá safar em situação de risco, estão absolutamente sós perante a morte. Querem os toureiros ser hombres até ao fim? Experimentem ser tão homens como eram os homens e os animais na Antiguidade: se ficarem no chão, fiquem no chão.
Morram na arena.
É cultura.
A senhora ministra da Cultura certamente compensará tão antigo costume.

Também era da tradição em Portugal, por exemplo, executar em público os condenados, bater nas mulheres, escravizar pessoas.
Foi assim durante milénios.
Ninguém via mal nenhum nisso a não ser, confusamente, com dúvidas, as próprias vítimas. Até que a piedade, na sua interpretação moderna e laica, acabou com tão veneráveis tradições.

Que será preciso para acabar com a tradição da tourada? Que sobressalto do coração será necessário para despertar em nós a piedade pelos animais?”(*)

(*) Paulo Varela Gomes – Morrer como um touro – Jornal Público, 27 de Fevereiro de 2010

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