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“(…) Há
um momento nas touradas em que o touro, muito ferido já pelas bandarilhas, o
sangue a escorrer, cansado pelos cavalos e as capas, titubeia e parece ir
desistir. Afasta-se para as tábuas. Cheira o céu.
Vêm os homens e incitam-no.
A
multidão agita-se e delira com o sangue.
O touro
sabe que vai morrer.
Só os imbecis podem pensar que os animais não sabem. Os
empregados dos matadouros, profissionais da sensibilidade embaciada, conhecem o
momento em que os animais "cheiram" a morte iminente.
Por
desespero, coragem ou raiva (não é o mesmo?), o touro arremete pela última vez.
Em Espanha morre. Aqui, neste país de maricas, é levado lá para fora para, como
é que se diz? ah sim: ser abatido. A multidão retira-se humanamente,
portuguesmente, de barriga cheia de cultura portuguesa, na tradição milenar à
qual nenhuma piedade chegou.
(…) Os
toureiros são corajosos, mas entram na arena sabendo que haverá sempre quem os
safe, se não à primeira colhida, então à segunda. Às vezes aleijam-se a sério e
às vezes morrem, o que talvez prove que os deuses da Antiguidade são justos,
vingativos e amigos de todos os animais por igual.
Os touros, esses, não têm
ninguém que os vá safar em situação de risco, estão absolutamente sós perante a
morte. Querem os toureiros ser hombres até ao fim? Experimentem ser tão
homens como eram os homens e os animais na Antiguidade: se ficarem no chão,
fiquem no chão.
Morram na arena.
É cultura.
A senhora ministra da Cultura
certamente compensará tão antigo costume.
Também
era da tradição em Portugal, por exemplo, executar em público os condenados,
bater nas mulheres, escravizar pessoas.
Foi assim durante milénios.
Ninguém via
mal nenhum nisso a não ser, confusamente, com dúvidas, as próprias vítimas. Até
que a piedade, na sua interpretação moderna e laica, acabou com tão veneráveis
tradições.
Que será
preciso para acabar com a tradição da tourada? Que sobressalto do coração será
necessário para despertar em nós a piedade pelos animais?”(*)
(*) Paulo
Varela Gomes – Morrer como um touro – Jornal Público, 27 de Fevereiro de 2010