Na edição de 7 de Maio de 1960, na revista brasileira O Cruzeiro (capa no final do texto), a grande jornalista Rachel de Queiroz publicou a seguinte crónica (respeita-se a grafia original):
O drama da África do Sul
Já
tenho ouvido de muito brasileiro ingênuo ou mal-aprendido o comentário de que
foi uma pena não se terem os flamengos fixado definitivamente no Brasil. Ah,
outro galo nos cantara! Teríamos progresso, futuro e não êsse descalabro
ibérico que nos legou a colonização portuguêsa...
Pois
isso que agora acontece na África do Sul é uma amostra do que seria de nós se a
insurreição pernambucana não houvesse pôsto fora do Nordeste o invasor
holandês. Flamengo pode ser muito bom na terra dêle. (Não posso dizer a frase
corriqueira - que êles podem ser bons para
as negras dêles, porque é para as negras dêles, evidentemente,
que êles são péssimos,...).
Flamengo tem altas virtudes, mas é um fato que sua atuação colonial durante mais de três séculos e em vários continentes demonstrou que êle não sabe conviver em harmonia com povos de origem racial diferente da sua. E eis por que tenho um certo mêdo dessas colônias holandesas que ora se estabelecem no Brasil. Muito boas, muito limpas, muito trabalhadeiras - mas não se estará formando em cada uma delas um quisto racial insolúvel, uma minoria intolerante e inassimilável?
Flamengo tem altas virtudes, mas é um fato que sua atuação colonial durante mais de três séculos e em vários continentes demonstrou que êle não sabe conviver em harmonia com povos de origem racial diferente da sua. E eis por que tenho um certo mêdo dessas colônias holandesas que ora se estabelecem no Brasil. Muito boas, muito limpas, muito trabalhadeiras - mas não se estará formando em cada uma delas um quisto racial insolúvel, uma minoria intolerante e inassimilável?
Ontem
alguém perguntava: que é que faz com que um povo aparentemente instruído,
polìticamente adiantado, acredite estùpidamente que nasceu para senhor, que a
côr da sua pele e a conformação do seu nariz o fadam a desprezar e escravizar
outros homens que têm pele e nariz diferentes?
A resposta é simples: um dos aspectos mais invariáveis da natureza humana é a capacidade de acreditar sinceramente e até mesmo fanàticamente, naquilo que lhe convém. Se eu preciso de um negro para trabalhar no meu roçado ou na minha mina, imediatamente me convenço que o bem e o destino do negro não é vaguear à toa nos matos, mas plantar a minha cana ou cavar a minha mina. Para a mina ou para o eito é que Deus o pôs no mundo, não para uma inútil liberdade.
A resposta é simples: um dos aspectos mais invariáveis da natureza humana é a capacidade de acreditar sinceramente e até mesmo fanàticamente, naquilo que lhe convém. Se eu preciso de um negro para trabalhar no meu roçado ou na minha mina, imediatamente me convenço que o bem e o destino do negro não é vaguear à toa nos matos, mas plantar a minha cana ou cavar a minha mina. Para a mina ou para o eito é que Deus o pôs no mundo, não para uma inútil liberdade.
Graças
a êsse mecanismo da mente humana, as maiores monstruosidades se praticam - e
sinceramente - em nome do bem. Êsse horrendo Hendrik Verwoerd, com as suas duas
balas encravadas no rosto, provàvelmente se considera o mártir de uma causa
santa. Todos sofremos a necessidade instintiva de praticar coisas certas, ou
pelo menos de receber a aprovação da demais Humanidade, ante o que praticamos.
Assim, se eu exerço um ato de violência contra outro ser humano, a minha censura, a minha consciência, o meu anjo-da-guarda, seja lá o que fôr, imediatamente me acusa pelo crime cometido. E eu, então, que não quero renunciar às vantagens da minha violência, mas também não quero ser chamado criminoso, invento para minha justificativa um motivo irretorquível, retumbante, se possível de caráter religioso, e portanto irrespondível, sob pena de sacrilégio.
No caso do negro, falado acima: em vez de reconhecer que o escravizo, convenço-me de que o negro é um irresponsável, incapaz de viver sem a minha ajuda; o trabalho a que o forço é a disciplina indispensável ao seu próprio bem; sôlto, êle ficaria entregue à miséria, à bebida, ao pecado. No fim acabo me proclamando a benfeitoria do negro, destinada por Deus à sua salvação... Uma vez convencida disso, torno-me invulnerável. Crio mesmo um dogma em tôrno daquela convicção. Se sou govêrno, crio lei a respeito e faço ampla catequização. E todos os que se beneficiam do meu regime passam também a acreditar fanàticamente, e, o que é pior, sinceramente, na honestidade dos nossos postulados.
Assim, se eu exerço um ato de violência contra outro ser humano, a minha censura, a minha consciência, o meu anjo-da-guarda, seja lá o que fôr, imediatamente me acusa pelo crime cometido. E eu, então, que não quero renunciar às vantagens da minha violência, mas também não quero ser chamado criminoso, invento para minha justificativa um motivo irretorquível, retumbante, se possível de caráter religioso, e portanto irrespondível, sob pena de sacrilégio.
No caso do negro, falado acima: em vez de reconhecer que o escravizo, convenço-me de que o negro é um irresponsável, incapaz de viver sem a minha ajuda; o trabalho a que o forço é a disciplina indispensável ao seu próprio bem; sôlto, êle ficaria entregue à miséria, à bebida, ao pecado. No fim acabo me proclamando a benfeitoria do negro, destinada por Deus à sua salvação... Uma vez convencida disso, torno-me invulnerável. Crio mesmo um dogma em tôrno daquela convicção. Se sou govêrno, crio lei a respeito e faço ampla catequização. E todos os que se beneficiam do meu regime passam também a acreditar fanàticamente, e, o que é pior, sinceramente, na honestidade dos nossos postulados.
Se
não fôsse artifício da mente humana, muito mistério social não teria
explicação. Êsses brancos da África do Sul, que friamente fazem massacrar
negros desarmados, provàvelmente não são assassinos contumazes; talvez até
sejam bons pais de famílias e tementes do que êles consideram a lei de Deus. O
Sr. Jânio Quadros, comentando outro dia o drama da África do Sul, disse numa
frase generosa que não compreendia como é que naquela terra havia igrejas. A
mim parece que a explicação é esta: êles se convenceram do seu direito divino
sôbre os negros, convenceram-se de que a Providência os destinou a oprimir e
explorar aquela raça nascida para serva dos brancos. E, em vista disso,
sentem-se em paz consigo, e ainda pedem trôco a Deus pelas suas boas obras.
Fenômeno idêntico explica por que o Sr. Salazar, homem de rígida formação religiosa e celebrada moral privada, chefia uma ditadura de opressão e impostoria; é que Salazar se convenceu de que é o desejado, o Messias da gene portuguêsa. E quem se revolta contra a pessoa ou os privilégios do salvador é culpado não de oposição a um homem fanático e mau, mas de atentado contra a própria nacionalidade. Assim se justificaria Hitler nos paroxismos da sua loucura assassina; assim se justificam os brancos racistas dos Estados Unidos. Isso explica por que nas guerras ambos os beligerantes estão certos de que Deus está do seu lado.
Fenômeno idêntico explica por que o Sr. Salazar, homem de rígida formação religiosa e celebrada moral privada, chefia uma ditadura de opressão e impostoria; é que Salazar se convenceu de que é o desejado, o Messias da gene portuguêsa. E quem se revolta contra a pessoa ou os privilégios do salvador é culpado não de oposição a um homem fanático e mau, mas de atentado contra a própria nacionalidade. Assim se justificaria Hitler nos paroxismos da sua loucura assassina; assim se justificam os brancos racistas dos Estados Unidos. Isso explica por que nas guerras ambos os beligerantes estão certos de que Deus está do seu lado.
Aliás,
assim também se justifica qualquer criminoso.
Todos
têm a sua alegação perfeita. Ninguém diz que matou ou roubou porque é mau,
degenerado ou louco. O sujeito que isso confessasse a si mesmo, provàvelmente
se suicidaria: dentro de tal evidência ser-lhe-ia impossível continuar a viver
consigo próprio.
Foi
o que aconteceu com Judas, entre outros.
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