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" (...) Nos espaços agrestes da Península Arábica, durante os primeiros anos do século VII, vivem-se ainda, às vésperas da Revelação, os tempos pesados e abomináveis da ignorância.
Os destinos das tribos, e o de cada um dos homens, flutuam com os humores dos espíritos - os djins - e dependem da vontade de uma corte de deuses e deusas mais ou menos complacentes.
As pessoas abandonam-se à melopeia entorpecente dos adivinhos, percorrem caminhos de peregrinação agarradas a bétilos e celebram ritos de adoração em torno de árvores, nascentes de água e calhaus sagrados.
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Mas nestas paragens, por estes dias, numa dimensão invisível aos mortais comuns, ocultam-se já ideias e imagens indiscutíveis, por enquanto fragmentadas e obscuras:
Pelos ventos que apressam a marcha ... promete-se-vos uma verdade: o Juízo realizar-se-á.
Disfarçada no torvelinho crepitante das tempestades de areia, vagueando por céus toldados de nuvens poeirentas, adormecida no tapete brando das dunas, pairando sobre o vinco sinuoso e ressequido dos uedes, a Palavra espera o Enviado:
Eu sou Quem te dá toda a abundância.
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Por cima do deserto de Nefud ou rasando as areias letais do Rub al-Khali, nos calores diurnos de fornalha ou emergindo da dormência gélida das madrugadas, no rasto pachorrento das caravanas de beduínos ou fluindo do quebranto retemperador dos oásis, aí está, dissimulada, a Palavra:
O teu Senhor conhece perfeitamente quem se extraviou da Sua senda. Ele conhece perfeitamente quem está no bom caminho.
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Nas escarpas abruptas que se debruçam para o mar Vermelho, nas pregas da cordilheira de Asir, nas planuras que bordejam o golfo Pérsico, no balanço ligeiro das acácias, das tamargueiras e dos juníperos que estremecem ao sopro cálido das aragens, por toda a parte e em todas as coisas se insinua a Palavra, aguardando o Profeta que a há-de conduzir ao entendimento e aos corações dos homens:
Prostrai-vos diante de Deus! Adorai-O!
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Nestes lugares, e neste tempo, por alturas do ano de 610, o caravaneiro Muhammad - ou Maomé -, da tribo dos Coraixitas, sente que o assaltam fenómenos estranhos, que não é capaz de interpretar.
Casado com a rica Kadidja, a antiga patroa, que se deixou cativar pela sua recta personalidade, ele furta-se com frequência ao bulício próspero da cidade natal, Meca, importante encruzilhada das caravanas de mercadores que atravessam o deserto para unirem o oceano Índico ao Mediterrâneo.
Aqui, onde o fosso entre ricos e deserdados se alarga todos os dias e onde o culto da fortuna e do poder se sobrepõe ao impulso da honra e da solidariedade, este homem de quarenta anos, bom pai, marido afectuoso, bem arrumado nos confortos da vida, perturba-se, sente-se a mais, acaba por recolher-se às solidões do monte Hira, nas cercanias da cidade.
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Distraído em meditações graves e inquietas, Muhammad atemoriza-se com a força que o invade e com a natureza das manifestações que lhe violentam os sentidos.
São zumbidos e silêncios, bruscas fulgurâncias, inspirações confusas que se desprendem das coisas e dos lugares.
Que visões fugidias são estas que assim perturbam Muhammad?
O que são e de onde vêm as sentenças enigmáticas que se lhe embrulham na língua febril, contra o céu da boca, e que aí se desfazem e morrem antes de adquirirem um sentido?
Não passará tudo de uma horrível maquinação dos djins?
Um dia, na Grande Noite, banhado pelas cintilações dolorosas de um intenso jorro de luz, na exaustão de um desmaio revelador, ele dá com um ser misterioso, de aspecto humano, suspenso entre os céus e a terra, que lhe traz afinal a misericórdia da compreensão:
Muhammad, em verdade és Profeta de Alá! E eu sou o anjo Gabriel!
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Doravante, este notável cidadão de Meca será o sucessor - o último, para os crentes - de Abraão, de Moisés, de Jesus Cristo.
Durante mais de vinte anos vão derramar-se no seu espírito, uma a uma, as mensagens de Deus, que ele divulgará aos homens e que serão depois da sua morte guardadas num livro que mudará o mundo - o Corão.
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A Palavra achou, enfim, o Enviado:
Não há outra divindade senão Alá, e Muhammad é o Seu Profeta. (...)" (*)
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(*) - José Bento Duarte - Peregrinos da Eternidade - Crónicas Ibéricas Medievais (4ª Crónica - A Palavra de Alá) - Editorial Estampa - Lisboa - Portugal (2003)
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