"(...) O que despontava era um negócio de amplitude colossal, suportado por uma cúpida associação de cumplicidades, incluindo as de um sem-número de potentados negros, no Congo e fora dele.
Estes líderes, e os seus agentes, promoviam incursões bélicas aos territórios vizinhos.
A troco dos prisioneiros que assim obtinham, recebiam das mãos dos negreiros as cobiçadas armas de fogo, bebidas alcoólicas e bugigangas supérfluas que faziam a sua efémera grandeza.
Neste negócio em progressão, a contagem das peças passou, ao correr dos anos, das centenas aos milhares, dos milhares às centenas de milhares - e destas aos milhões.
Desmoronavam-se os seculares sistemas produtivos, em especial os que se fundavam na agricultura.
A África tocada pelos Europeus esvaía-se por acção de guerras sem quartel, num cenário de pilhagens e destruições que deslocavam populações inteiras, aterrorizadas pelos caçadores de gente. (...)
(...) Pelas trilhas do sertão africano, galgando destinos de agonia e indignidade debaixo do silvo do chicote e das injúrias dos guardas, intermináveis colunas de cativos negros dirigem-se a marchas forçadas para os locais de embarque no litoral.
Extenuados e trôpegos, seguem manietados e ligados uns aos outros. Muitos ostentam os pescoços cingidos por gargalheiras de ferro ou por ramos de árvore bifurcados. Os retardatários são executados sem contemplações.
Os mais robustos progridem esmagados por fardos de mercadorias ou por grandes pedregulhos e sacos de areia com que se suprime neles, de maneira expedita, toda a veleidade de fuga.
Chegados à costa, depois de ultrapassada uma rede de numerosos intermediários, homens, mulheres e crianças são encafuados em barracões insalubres. Aqui se amontoam dias a fio, aguardando a sinistra aparição, no horizonte, do velame dos navios negreiros que vêm para os arrebatar à sua pátria.
Os compradores são meticulosos e eficazes.
Investigam-lhes os membros, os dentes, os seios, os testículos, as nádegas, os olhos, a própria expressão. Volteiam-nos. Palpam-nos. Avaliam-nos.
Quando satisfeitos, marcam-nos de modo indelével com ferros em brasa.
Transidos de pânico e dor, são então guiados para porões escuros, quase desprovidos de ventilação, onde ficam acorrentados em tabuados imundos.
Nas travessias do Atlântico, rumo às Américas, gasta-se, em condições infernais, de um a dois meses.
Segundo registos fidedignos, o espaço de cada um dos prisioneiros raramente excede o de um morto no seu ataúde. Viajam com frequência encaixados uns nos outros como colheres.
Durante as tempestades, jogados pelo balanço dos navios, revolvem-se apavorados, aos gritos, na pasta fétida dos dejectos e do vomitado dos enjoos.
Durante as tempestades, jogados pelo balanço dos navios, revolvem-se apavorados, aos gritos, na pasta fétida dos dejectos e do vomitado dos enjoos.
A devastação das epidemias é medonha e, por vezes, ocorrem suicídios. Os cadáveres são logo atirados pela borda fora. Por tudo isto se qualificam de tumbeiros esses navios lúgubres, que fazem lembrar gigantescas tumbas flutuantes. Levam muitas vezes no seu rasto de espuma alvacenta uma fieira de barbatanas de tubarões impelidos pelo instinto.
Desembarcados nas Américas, os sobreviventes são tratados a preceito. Engordam-nos, besuntam-nos com óleo, às vezes espevitam-nos com drogas. É forçoso que evidenciem um aspecto aceitável no instante da venda.
Seguem depois ao seu destino, vergados à dor e à saudade da terra-mãe e das famílias perdidas.
Somem-se de vez no emaranhado das plantações ou no negrume das minas, cumprindo fados sombrios e desprovidos de esperança. Entoam dolentes cânticos de mágoa - segundo o costume da sua terra, como anotara, muitos anos antes, num irreprimível impulso de compaixão, o cronista Zurara." (*)
(*) - José Bento Duarte - Senhores do Sol e do Vento (Crónicas Verídicas de Portugueses, Angolanos e Outros Africanos) - Editorial Estampa - Lisboa - Portugal - 1999.
(*) - José Bento Duarte - Senhores do Sol e do Vento (Crónicas Verídicas de Portugueses, Angolanos e Outros Africanos) - Editorial Estampa - Lisboa - Portugal - 1999.
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