Samir Amin, economista egípcio, escreveu em 2003 um interessante livrinho (*), de cuja introdução se retira o pedaço seguinte.
Amin projecta-se num futuro mais ou menos distante, reflectindo sobre ocorrências antigas (de finais do séc. XX - princípios do séc. XXI).
Não seria difícil discorrer assim após as recentes (e omnipresentes) convulsões de índole económico-financeira (essencialmente políticas, pois é disso que, nestes jogos extremos, em última análise se trata).
Notável terá sido fazê-lo há perto de seis anos, como fez o autor...
"Pelos finais do século XX, um mal atacou o mundo. Nem todos morreram dele, mas todos foram atingidos.
Ao vírus que esteve na origem da epidemia deu-se o nome de "vírus liberal". Este fizera a sua aparição por volta do século XVI no seio do triângulo Paris-Londres-Amesterdão.
Os sintomas com que se manifestava pareciam à época insignificantes, e os homens não só se acostumaram, desenvolvendo os anticorpos necessários, como ainda souberam tirar proveito do vigor reforçado que ele provocava.
Mas o vírus atravessou o Atlântico e encontrou na seita dos que o propagaram um terreno favorável, desprovido de anticorpos, o que conferiu formas extremas à doença que ele causava.
O vírus voltou a aparecer na Europa pelos finais do século XX, regressado da América, onde havia sofrido mutações, e, reforçado, conseguiu destruir grande número dos anticorpos que os europeus tinham desenvolvido ao longo dos três séculos precedentes.
Assim provocou uma epidemia que podia ter sido fatal para o género humano, não fora os mais robustos dos habitantes dos países antigos terem sobrevivido à epidemia, acabando por conseguir erradicar o mal.
O vírus provocava nas vítimas uma curiosa esquizofrenia.
O ser humano deixava de viver como um ser total, que se organizava para produzir o necessário à satisfação das suas necessidades (aquilo que os estudiosos qualificaram como 'vida económica') e que ao mesmo tempo desenvolvia instituições, regras e costumes que lhe permitiam progredir (o que os mesmos estudiosos designaram por 'vida política'), conscientes de que estes dois aspectos da vida social eram indissociáveis.
Doravante, passou a assumir-se ora como 'homo economicus', abandonando àquilo a que chamava 'o mercado' a tarefa de regular automaticamente a sua 'vida económica', ora como 'cidadão', depositando nas urnas os votos com que escolhia aqueles que tinham a responsabilidade de estabelecer as regras do jogo da sua 'vida política'.
As crises do final do século XX e do início do século XXI - de que felizmente já nos livrámos definitivamente - giravam todas em torno das confusões e dos impasses provocados por esta esquizofrenia.
A Razão - a verdadeira, não a americana - acabou por levar a melhor.
Todos os povos sobreviveram, os europeus, os asiáticos, os africanos, os americanos e até os texanos, que entretanto mudaram muito e se tornaram seres humanos semelhantes aos outros.
Optei por este final feliz, não por um incorrigível optimismo, mas porque na outra hipótese não haveria mais ninguém para escrever a história.
Fukuyama estaria certo: o liberalismo anunciava efectivamente o fim da história.
Portanto, toda a humanidade teria perecido no holocausto.
Os últimos sobreviventes, texanos, ter-se-iam organizado num bando errante, para depois serem imolados sob as ordens do chefe da sua seita, que julgavam ser uma personagem carismática.
Também se chamava Bush (...)".
Samir Amin, que nasceu no Cairo, Egipto, em 3 de Setembro de 1931, é um economista neo-marxista, um dos mais importantes da sua geração. Realizou os seus estudos (política, estatística, economia) em Paris. Reside, actualmente, em Dakar (Senegal).
Entre 1957 e 1960 trabalhou na administração pública egípcia, na área do desenvolvimento económico.
Foi conselheiro do governo do Mali entre 1960 e 1963.
Em 1970 tornou-se director do Instituto Africano de Desenvolvimento Económico e Planeamento, com sede em Dakar.
É presentemente director do Forum do Terceiro Mundo, uma associação internacional formada por intelectuais da África, Ásia e América Latina, destinada a fortalecer os laços entre os países do Terceiro Mundo (também com sede em Dakar).
(*) - Le Virus Libéral, Temps des Cerises, 2003.
Editado em Portugal pela Campo das Letras, Porto, 2005, com o título: O Vírus Liberal - A Guerra Permanente e a Americanização do Mundo (96 págs.)
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