"Nelson Mandela fez hoje 90 anos.
Quando foi libertado no início de 1990, os directos da televisão revelaram-nos, enfim, a cara, o corpo, a pose do mais célebre dos prisioneiros políticos de todo o mundo. Dos seus 27 anos de cativeiro não havia nenhuma imagem recente, e especulava-se então, através de desenhos e simulações fotográficas, como seria na actualidade o homem que simbolizara não só a longa luta contra o apartheid mas também a força exemplar da resistência humana contra a injustiça e a opressão.
Na redacção do Público, estávamos ainda na fase frustrante dos ‘números zero’, esperando que as condições técnicas para o lançamento do jornal se encontrassem finalmente reunidas, mas a libertação de Mandela era o grande destaque da edição do dia seguinte, redigida e paginada como se fosse ‘a sério’.
Quando Mandela apareceu no televisor ao lado da mulher com quem estava então casado, Winnie, de punho erguido mas caminhando com dificuldade, a emoção que percorria as dezenas de olhos postos no ecrã foi toldada por um calafrio: aquele homem que nos habituáramos a ver como um herói lendário era, afinal, um ancião a quem parecia faltar o fulgor e a energia para a ‘missão impossível’ que o aguardava. Mas estávamos enganados.
Se Nelson Mandela é hoje unanimemente reconhecido como a maior autoridade moral do nosso tempo – com uma dimensão equivalente à de Gandhi – é porque ele encarnou, como nenhum outro líder vivo, a intransigência radical na luta por uma causa nobre e a capacidade quase sobre-humana de ultrapassar as humilhações e ofensas sofridas em nome dela – em suma, esse dom normalmente atribuído apenas aos santos: o de vencer o ódio e preconizar o perdão.
Sem Mandela, a África do Sul teria dificilmente escapado à catástrofe de uma vingança sangrenta que destruiria o país. Com ele, foi possível lançar as bases de uma sociedade pós-racial – o impulso que torna hoje possível um fenómeno como o de Barack Obama.
Evidentemente, a actual África do Sul está longe, muitíssimo longe de ser aquela com que Mandela terá sonhado: é um país dividido por tremendas desigualdades e conflitos, devassado pela criminalidade violenta nas grandes metrópoles, e onde o espectro do racismo perdura entre etnias e homens da mesma cor.
O líder que recusou cumprir mais de um mandato presidencial, confirmando com isso o seu desapego do poder, teve como sucessor alguém que representa, em larga medida, o seu retrato em negativo: o medíocre e pusilânime Mbeki, que persiste em caucionar essa vergonha maior para a honra dos africanos que é a condescendência com o ditador demente do Zimbabué, Robert Mugabe. Não por acaso, entre as raras vozes que em África se levantaram vivamente contra o escândalo, estava justamente a de Mandela (sem esquecer a de outra grande figura moral sul-africana, o arcebispo Desmond Tutu).
Mandela lançou a semente, abriu uma porta – para o horizonte da humanidade, não apenas para um continente – mas seria impossível pedir-lhe que, apenas com a inspiração do seu exemplo, tivesse resgatado a África das desgraças que ameaçam devastá-la. Imagina-se o que Mandela deve sofrer por causa disso nestes últimos anos de vida. Mas é ele próprio que obstinadamente recusa o estatuto de homem providencial (tendo-o sido, embora, para a liquidação pacífica do apartheid). Ele considera-se não um missionário nem sequer um ideólogo, tão só um político que conduziu a sua acção para atingir um determinado objectivo.
O jornalista Richard Stengel, actual director da Time, que nos anos 90 colaborou estreitamente com Mandela na redacção da sua autobiografia (O Longo Caminho para a Liberdade), escreve na última edição daquela revista um longo artigo sobre as lições de liderança do primeiro presidente negro sul-africano. Ora, o que talvez pareça mais surpreendente é verificar como, entre essas lições, o pragmatismo e o sentido táctico do antigo prisioneiro do apartheid se revelam indissociáveis da sua grandeza moral para libertar a África do Sul de um regime opressor e desumano.
Mandela não é, conforme confessa, um super-homem que desconhecesse o medo ou um político que menosprezasse a persuasão pelo charme, pelo sorriso (caloroso, inconfundível), para cativar inimigos, adversários ou rivais. Mas para não aparecer vulnerável ao medo e ser eficazmente persuasivo, esforçava-se por transmitir aos outros uma imagem permanente de serenidade e confiança: era esse talvez o segredo essencial da sua leadership. Além disso, não prescindia de procurar todos os consensos possíveis antes de tomar uma decisão e aceitava com naturalidade as opiniões contrárias à sua e ser vencido por elas.
Intransigente e indomável nos princípios, Mandela nunca admitiu negociar a sua libertação em troca de qualquer renúncia. Mas soube antever o momento e a necessidade dos compromissos quando percebeu que ganhara o combate contra o apartheid. E porque a sua própria dolorosa experiência de reclusão lhe tinha ensinado que nada de humano pode ser construído sobre o ressentimento, o ódio e a vingança.
Mais do que herói ou santo laico, Mandela será, sobretudo, o testemunho vivo de uma Humanidade que não desistiu de o ser e se revê no seu exemplo (ou noutros, poucos, como os dos europeus Havel ou Geremek, falecido esta semana num desastre).
Parabéns pelos seus 90 anos, senhor Mandela. E obrigado por nos ter ensinado a ser humanos."
(Vicente Jorge Silva)
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