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"A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada...
De tudo o que se passou comigo só conservo a memória intacta de dois ou três rápidos minutos. Esses, sim! Teimam, reluzem lá no fundo e inebriam-me, como um pouco de água fria embacia o copo.
Só de pequeno retenho impressões tão nítidas como na primeira hora: ouço hoje como ontem os passos de meu pai quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul-ferrete das hidrângeas que enchiam o canteiro da parede. O resto esvai-se como fumo.
Até as figuras dos mortos, por mais esforços que eu faça, cada vez se afastam mais de mim… Algumas sensações, ternura, cor, e pouco mais. Tinta. Pequenas coisas frívolas, o calor do ninho, e sempre dois traços na retina, o cabedelo de oiro, a outra banda verde…
Passou depois por mim o tropel da vida e da morte, assisti a muitos factos históricos, e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao contrário, este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibração: a morte daquela laranjeira que, de velha e tonta, deu flor no inverno em que secou.
O resto usa-se hora a hora e todos os dias se apaga.
Todos os dias morre.
Lá está a velha casa abandonada, e as árvores que minha mãe, por sua mão, dispôs: a bica deita a mesma água indiferente, o mesmo barco arcaico sobe o rio, guiado à espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé sobre a gaiola de pinheiro.
Só os mortos não voltam.
Dava tudo no mundo para os tornar a ver, e não há lágrimas no mundo que os façam ressuscitar." (*)
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(*) - Raul Brandão - Portugal (1867-1930).
Memórias - 1.º vol. - Editado por "Renascença Portuguesa," Porto, 1919
(Prefácio, pág. 10-12 ).
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3 comentários:
Olá Cavaleiro,
Bonito e comovente poema. Não conhecia Raul Brandão.
Gostaria de lhe desejar uma santa e serena Páscoa. Que Cristo Ressuscitado lhe traga paz e esperanças.
Com os meus mais sinceros e afetuosos votos.
Juliana
Olá, Juliana, espero que continue tudo bem consigo. Agradeço e retribuo os amáveis votos pascais, tornando-os extensivos aos que lhe sejam mais caros. Quanto a Raul Brandão: ele é sobretudo um grande prosador português no domínio do romance. A sua obra atinge os pontos culminantes quando ele se refere aos pobres, aos fracos, aos desgraçados, aos mortos ("os que não voltam..."). Conta também com algumas meritórias incursões pela História. Neste particular distingo o excelente "El-Rei Junot", onde ele aborda uma das invasões francesas do território lusitano, nos princípios do século XIX (aquelas invasões que forçariam a família real portuguesa a refugiar-se no Brasil). O prefácio que Brandão aí escreveu constitui uma das peças literárias mais poderosamente tocantes da nossa língua. Por exemplo, foi nesse livro que ele disse esta verdade simples, mas terrível: "a história é dor, a verdadeira história é a dos gritos...".
Um grande abraço amigo e grato do
Cavaleiro da Torre
Ola, Cavaleiro, comigo esta tudo bem e consigo? Como passou a Pascoa?
Obrigada por me apresentar Raul Brandao e por seu comentario sempre interessante. Vou procurar saber mais sobre Brandao, sempre me interessei pela literatura lusitana, principalmente por Eça de Queiros.
Um caro abraço
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