domingo, 16 de junho de 2019

D. Sebastião morreu em Alcácer-Quibir? (Os Falsos D. Sebastião) - 3.ª PARTE



Continuação de 2 de Junho de 2019 (1.ª Parte - ver: O Sebastianismo)
e de 9 de Junho de 2019 (2.ª Parte - ver: O "rei de Penamacor")

O "rei da Ericeira"

Em 1585, decorrido cerca de um ano sobre a impostura do "rei de Penamacor", já outro impostor, Mateus Álvares, surgia para inquietar as autoridades espanholas que tinham passado a dominar Portugal. Mas, desta vez, as coisas assumiriam muito maior gravidade.

Mateus Álvares era filho de um pedreiro, ou talhador de pedra da ilha Terceira, Açores. Ainda muito jovem, entrou para um mosteiro próximo de Óbidos, a algumas léguas de Lisboa. Mas não tardou a desistir do noviciado e a fazer-se eremita num lugar solitário, não muito distante da vila marítima da Ericeira.
Nesse tempo, muitos eremitas viviam da caridade pública e eram objecto de veneração - quer da gente pobre e humilde, quer de pessoas que levavam vida desafogada ou eram, mesmo, ricas. Foi o que sucedeu a Mateus Álvares no início do Verão de 1585.

Tal como acontecera com o "rei de Penamacor", em breve começou a correr entre o povo que aquele eremita podia ser o saudoso rei D. Sebastião. Dizia-se que, no silêncio da noite, ele se açoitava a si próprio com uma vergasta proferindo frases estranhas: "Portugal, Portugal, que luto te rodeia! Ai de mim, infelizmente sou eu o causador dos desastres que te afligem! Infeliz D. Sebastião, uma vida de miséria, de penitência e de lágrimas será suficiente para expiar as minhas culpas?"

Não foi preciso mais para que o povo das redondezas começasse a dar largas à imaginação. E quando António Simões, um rico proprietário, apareceu com a sua esposa a garantir que o eremita não era outro senão D. Sebastião (porque eles o conheciam), a ideia adquiriu consistência e a causa de mais um falso rei passou a contar com numerosos adeptos. Parece no entanto que o eremita, num assomo de prudência, negou ao princípio ser o rei desaparecido. Depois ter-se-á deixado levar na onda, passando a ser visitado por um número cada vez maior de apoiantes, muitos deles chegados de lugares longínquos.

A causa de Mateus Álvares ganhou outro fôlego com o apoio que passou a ter de Pedro Afonso, homem abastado de Rio de Mouro, que se assumia como adversário declarado da dominação espanhola. Alguns aconselharam-no a desistir daquele apoio, alertando-o para a possível impostura de Mateus Álvares. Mas ele, movido pelo ódio aos espanhóis, teimou no seu propósito, proclamando: "Pouco me importa que ele seja ou não o rei D. Sebastião, antes do S. João estará sentado no trono!"

A partir desse momento, colocada de lado toda a prudência, as coisas precipitaram-se. Mateus Álvares conseguiu reunir uma força de oitocentos homens, colocou-os sob o comando de Pedro Afonso (que julgou dever acrescentar Meneses ao seu nome), fez-se reconhecer como D. Sebastião e, enquanto tal, foi proclamado rei na vila da Ericeira.




O pretenso rei tratou então de organizar a sua casa, concedendo aos adeptos alguns cargos na "corte". E como Pedro Afonso tinha uma filha, apressou-se a desposá-la com toda a pompa que conseguiu encenar. Como não podia deixar de ser, a jovem foi proclamada rainha: para o efeito, colocaram-lhe na cabeça um diadema oportunamente retirado de uma imagem da Virgem.

Generoso, o "rei Sebastião" resolveu premiar Pedro Afonso, agora seu sogro: fê-lo marquês de Torres Vedras, conde de Monsanto e senhor da Ericeira. Passou então a viver muito retirado, a fim de melhor defender o seu prestígio. Só permitia que se aproximassem alguns privilegiados, aos quais se entretinha a contar pormenores da batalha de Alcácer-Quibir. É claro que os seus ouvintes não tinham maneira de controlar a veracidade desses fantásticos relatos.

Ao mesmo tempo, Mateus foi assinando uma profusão de decretos e despachos, aos quais não faltava o selo real. Vários desses despachos seguiram para diferentes lugares do reino, anunciando o seu regresso, fazendo apelo aos sentimentos de fidelidade do povo e pedindo aos destinatários para pegarem em armas contra o estrangeiro. O impostor apresentava-se, portanto, como o verdadeiro rei - Sebastião -, pronto a reivindicar os seus direitos e a libertar a pátria oprimida por Espanha.

A audácia do antigo eremita e dos seus cúmplices parecia não conhecer limites. Um dia, Mateus Álvares resolveu mandar entregar uma mensagem insolente ao próprio vice-rei de Espanha em Portugal - o cardeal-arquiduque Alberto de Áustria, sobrinho de Felipe II -, na qual o intimava a abandonar rapidamente Lisboa e o país. O arquiduque achou aquilo tão disparatado que decidiu não atribuir grande importância ao assunto. Mas cedo se desenganaria.

A verdade é que a causa do impostor ganhava proporções inesperadas. Os efectivos revoltados chegavam já ao milhar, e alguns homens iam abertamente comprar comida e munições a Torres Vedras. Perto dali, em Mafra, o povo tomava decididamente o partido do aventureiro e acolhia os revoltosos de braços abertos. Na região, um pouco por toda  a parte, já só se falava em marchar sobre Lisboa. A ideia era entrar na capital a 23 de Junho, véspera de S. João, e proclamar o regresso do rei legítimo - "D. Sebastião" -, pondo assim termo ao jugo espanhol.

As coisas agravaram-se ainda mais quando os revoltosos, supondo-se ameaçados pelas autoridades, aprisionaram um juiz e o seu escrivão, subiram com eles aos rochedos da costa e os  arremessaram ao mar. Invadiram também a quinta de um membro do Conselho Real e juiz no Supremo Tribunal - o doutor Gaspar Pereira - e massacraram-no juntamente com um seu sobrinho com o pretexto de que haviam defendido os direitos de Felipe II ao trono português.
Pedro Afonso, o belicoso chefe das forças armadas de Mateus Álvares, declarou então que reservava sorte idêntica a todos os que recusassem reconhecer aquele a quem chamava "D. Sebastião".

Cardeal-arquiduque Alberto de Áustria,
sobrinho de Felipe II de Espanha,
colocado como vice-rei em Portugal

O governo espanhol sentiu então o perigo e decidiu reagir com violência. Foi dada ordem ao marquês de Santa Cruz, capitão-general das forças de terra e mar, para colocar à disposição do corregedor Diogo da Fonseca tropas suficientes para esmagar a rebelião.
Fonseca dirigiu-se logo para a Ericeira, onde se situava o quartel-general dos rebeldes, e aí deparou com cerca de duas centenas de oponentes armados. Intimados a renderem-se, em nome de Felipe II - com a promessa de que, à excepção dos chefes, seriam todos perdoados -, responderam com uma descarga de arcabuzes. Foram no entanto rapidamente derrotados e cerca de oitenta caíram prisioneiros. Chamados a depor, estes revelaram que o grosso dos insurrectos se achava concentrado em Torres Vedras, localidade para onde logo se encaminharam as forças governamentais.

Em Torres Vedras, Pedro Afonso não tardou a aparecer. Vinha a cavalo à cabeça dos seus e, não se apercebendo de que a maior parte da tropa inimiga se tinha emboscado no meio dos trigais, carregou furiosamente. A fuzilaria governamental estalou então de todos os lados e o pequeno exército de Pedro Afonso, sempre com ele à sua testa, não teve mais remédio senão bater lepidamente em retirada. Alguns dos homens, no entanto, demonstraram maior coragem do que o seu comandante: entrincheirados no adro de uma pequena igreja, deixaram-se matar quase todos em nome de uma causa em que sinceramente acreditavam.
Mateus Álvares, que observava os acontecimentos a prudente distância, compreendeu que o seu projecto estava perdido e tentou fugir para as montanhas. Denunciado antes de lá chegar, acabou, com alguns companheiros, nas mãos do corregedor Diogo da Fonseca, que logo os despachou para Lisboa a fim de serem julgados.

O desenlace foi rápido. A 12 de Junho de 1585, o antigo eremita - ou "rei da Ericeira", como passaram a chamar-lhe desde então - fez uma entrada na capital muito diferente da que havia imaginado, montado numa besta de carga e de mãos atadas atrás das costas. As ruas estavam pejadas de curiosos. No processo, e sem necessidade de tortura, confessou tudo. Declarou porém que só tivera intenção de provocar um levantamento popular que conduzisse ao fim do domínio espanhol. Em caso de sucesso, garantiu, confessaria a verdade - ou seja: que não era, de facto, D. Sebastião - e diria aos Portugueses que escolhessem o rei que quisessem.

A 14 de Junho, Mateus foi conduzido ao cadafalso. O carrasco começou por lhe cortar a mão direita, com a qual tinha ousado assinar documentos com o nome de D. Sebastião. Em seguida foi enforcado com vários dos seus companheiros. Uma vez desligado da forca, cortaram-lhe a cabeça, que foi colocada numa das pontas de ferro do pelourinho e ficando aí exposta durante um mês. O seu corpo foi reduzido a pedaços que se penduraram em cada uma das portas de Lisboa.

A repressão das autoridades, conduzida pelo corregedor Diogo da Fonseca - dotado de amplos poderes para o efeito - foi depois duríssima e implacável. Por toda a parte onde os partidários do pretenso D. Sebastião tinham encontrado acolhimento foram efectuadas prisões, quase sempre culminadas em execuções. Multiplicaram-se as delações, a que se seguiam mais e mais execuções.
Pedro Afonso, o comandante das tropas rebeldes, foi feito prisioneiro e confirmou tudo o que o seu genro havia confessado. Acabou também executado.
A história nada diz acerca da esposa, agora viúva, de Mateus Álvares - a filha de Pedro Afonso. Mas é pouco provável que tenha conseguido escapar à fúria espanhola. Na melhor das hipóteses, deve ter sido sujeita a uma longa detenção - o castigo por ter trazido na cabeça, durante algumas semanas, a coroa de rainha sem reino.
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(CONTINUA EM 23 de JUNHO de 2019 - O Pasteleiro de Madrigal ver aqui)


Fontes principais: MIGUEL D'ANTAS - Les Faux D. Sébastien - Étude sur l'histoire de Portugal - Publicado no ano de 1866 por Chez Auguste Durand, Libraire - Rue Cujas (ancienne Rue des Grès, 7), PARIS - FRANCE

J. LÚCIO D'AZEVEDO - A Evolução do Sebastianismo - Publicado no ano de 1918 por Livraria Clássica Editora - Lisboa - Portugal.

2 comentários:

  1. O vice-rei (aliás, vice-rainha) que a Espanha mandou para governar Portugal não era a duquesa de Mântua?

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  2. Pedro Lima: o vice-rei espanhol em Portugal, na altura destes acontecimentos, era, de facto, como se diz no texto, o cardeal-arquiduque Alberto de Áustria. Nesse tempo, a duquesa de Mântua, Margarida de Saboia, nem sequer tinha vindo ao mundo (nasceria em 1589).
    É preciso ter presente que a dominação espanhola em Portugal se estendeu por seis décadas (1580-1640). Durante esse período, a Coroa espanhola nomeou cerca de dezena e meia de vice-reis, havendo ainda que contar, numa ou noutra ocasião, com governos colectivos (as Juntas Governativas).
    A duquesa de Mântua só esteve em Portugal, como vice-rainha, nos derradeiros seis anos daquele período. Tendo chegado em 1634, foi afastada pelo golpe revolucionário de 1 de Dezembro de 1640, que restituiu a independência a Portugal. Obrigado pela colaboração e volte sempre.

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