sábado, 15 de junho de 2019

CALÇADA DE CARRICHE (António Gedeão)


Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.

Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.

Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.

Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.

Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.

Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.

Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;

bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;

deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;

despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;

chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.

Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;

puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;

anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;

salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,

puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;

toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,

puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.

Regressa a casa
já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.

Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

 

1 comentário:

  1. Poema de fina sensibilidade, mas terrível! Retrato cru do quotidiano vivido por uma infinidade de mulheres...

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