Pequenas e grandes histórias da História e mensagens mais ou menos amenas sobre vidas, causas, culturas, quotidianos, pensamentos, experiências, mundo...
Spínola com os seus oficiais no teatro de operações. De camuflado, monóculo, luvas e pingalim.
O
general António Sebastião Ribeiro de Spínola foi, entre 1968 e 1973, o
penúltimo governador e comandante-chefe das Forças Armadas portuguesas na então
colónia da Guiné-Bissau.
No ano seguinte ao do termo da comissão, e após o
golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 em Portugal, seria mandatado pelos
revoltosos para receber o poder das mãos do primeiro-ministro Marcelo Caetano,
entretanto cercado no quartel do Carmo, em Lisboa. Tornar-se-ia nesse mesmo dia
presidente da Junta de Salvação Nacional e, posteriormente, Presidente da
República de Portugal (cargo que ocuparia por breves meses).
Na
Guiné-Bissau, colónia difícil, pantanosa, de pequena expressão territorial
(pouco mais de um terço da superfície de Portugal) e ameaçada por bases
inimigas localizadas em países limítrofes (Senegal, Guiné-Conacri), as tropas portuguesas
enfrentavam a mais difícil das três frentes em que combatiam na época (as
outras eram Angola e Moçambique).
No
ano de 1973, as Forças Armadas dispunham, na Guiné-Bissau, de 58 000
homens, dos quais 36 000 oriundos de Portugal e cerca de 22 000 recrutados
localmente para as chamadas Forças Africanas (Comandos e Fuzileiros Africanos,
Milícias, Autodefesas, etc.).
No comando absoluto deste efectivo, o general
António de Spínola combinava as acções de combate no terreno (onde ele
comparecia com frequência, correndo os riscos inerentes) com campanhas maciças
de propaganda e de acção psicológica, visando a conquista de adesões entre as
populações autóctones.
Spínola cumprimenta um dos militares guineenses das Forças Armadas portuguesas
O
recentemente falecido coronel Otelo Saraiva de Carvalho, que viria a ser o
estratega do golpe de 25 de Abril de 1974, achava-se em comissão de serviço na
Guiné-Bissau desde 1970.
Detentor, na altura, do posto de capitão, não
pertencia propriamente às forças operacionais, pois fora colocado na Repacap (Repartição
de Assuntos Civis e Acção Psicológica). Essa posição permitiu-lhe uma relativa aproximação
ao general Spínola, cujo perfil e desempenho pôde observar durante os anos em
que coexistiram naquele teatro de guerra.
No
seu livro Alvorada em Abril, publicado em 1977, Otelo de Carvalho procura delinear o retrato do famoso general. Torna-se evidente, ao correr de dezenas de
páginas, que não morria de amores pelo comandante-chefe (a quem ele, e outros camaradas,
chamavam o Velho). Nas suas próprias palavras: Admirando o Velho como chefe
militar, não o respeitava como homem.
Assim,
ainda que lhe reconheça o carisma, as extraordinárias capacidades de liderança,
a enorme coragem física, a invulgar resistência e a inesgotável capacidade de
trabalho, Otelo atribui a Spínola o propósito de apenas desejar aproveitar a comissão na
Guiné para se projectar para voos mais altos. A sua ambição é um cavalo selvagem que
mal consegue dominar. Sabe o que quer e para onde vai. A Presidência da República
atrai-o com uma força irresistível.
Autoritário,
sanguíneo, por vezes irascível, o general Spínola – segundo Otelo - conduzia os seus batalhões da Guiné através do medo. Com um perfil operacional
inconfundível – de camuflado, monóculo, luvas e pingalim – o comandante-chefe
tinha o hábito de poisar sem aviso junto de qualquer unidade, procurando
detectar falhas, negligências ou o mais pequeno sinal de incompetência.
Foi
assim que muitos comandantes se viram afastados dos postos perante formaturas
dos seus homens, o que equivalia, praticamente, à morte militar do oficial
atingido. Mas o Velho, ainda de acordo com Otelo, colhia depois o fruto dessas
acções de terror auto-infligidas, obtendo das forças no terreno um elevadíssimo
nível de operacionalidade e eficácia – tudo à custa de dezenas de noites
insones, nervos esfrangalhados e envelhecimentos precoces.
O
general Spínola mostrava-se particularmente atento à divulgação, pelos meios de
comunicação social, da sua acção governativa e do seu modo de fazer a guerra.
Quase sempre seguido pela imprensa e pelos meios televisivos, raro era o dia em que não tomava lugar num helicóptero para visitar um ou mais destacamentos
militares, contactar populações nativas, inspeccionar a instrução de novas companhias
de milícias, presidir a juramentos de bandeira ou inaugurar vários melhoramentos no território.
Tudo
isto lhe granjeou, na Guiné, em Portugal e em muitos países
estrangeiros, um prestígio imenso e uma auréola de “herói militar” que o
transformou na personagem central de numerosas reportagens e figura frequentíssima
em capas de revistas.
Otelo,
porém, admitindo embora as excelsas qualidades militares do general,
achava que este as aplicava, embora invocando permanentemente “a Pátria”, em
exclusivo proveito próprio, para seu engrandecimento e satisfação narcísica da
sua vaidade e da sua ambição pessoal. Os seus defeitos sobrepujavam as
qualidades (…) Medularmente vaidoso e autoritário, sempre o reconheci
totalmente incapaz de se atribuir o mínimo erro ou de debitar a mais suave
autocrítica. Sendo detentor da razão e da verdade absolutas, era com
displicência e sem remorso que liquidava o bode expiatório escolhido para arcar
com as responsabilidades de qualquer falhanço pessoal.
Spínola passando revista a tropas guineenses do Exército Português
A
propósito da irresistível (por vezes quase suicida) inclinação de Spínola para o exibicionismo e a auto-promoção, Otelo de Carvalho narra um extraordinário episódio ocorrido entre
o general e um membro das milícias africanas, na povoação de Tite, margem sul
do rio Geba.
Por
essa altura, em Janeiro de 1971, estava de visita à Guiné-Bissau um jornalista
norte-americano, Jimmy Hoagland, correspondente do Washington Post em Nairobi.
Otelo, que dominava bem o idioma inglês, servia-lhe de cicerone nas suas
andanças pela colónia. Num dia em que o general Spínola tinha resolvido ir a
Tite para assistir à sessão final de instrução da milícia africana, Otelo levou
o visitante até lá e apresentou-o ao comandante-chefe.
Spínola
passou revista aos novos combatentes, falou à formatura e presenciou com agrado
as evoluções de ordem unida. De repente, perguntou: Qual é, de todos os
instruendos, o melhor atirador? Os oficiais responsáveis fizeram avançar um
negro baixo, de olhos vivos: É este, meu general. Chamamos-lhe “o Americano”.
Jimmy Hoagland achou graça à coincidência e houve gargalhada geral entre os
circunstantes.
Spínola perguntou ao rapaz: Então, olha lá: como é que gostas
mais de fazer fogo com a espingarda? De pé, de joelhos, deitado ou sentado? O
soldado respondeu que preferia ficar deitado no chão. Bom, então agora quero ver
a tua pontaria a cem metros do alvo. Deitas-te aqui e vais apontar e disparar
para o alvo que eu indicar.
O soldado obedeceu, encostou a arma à cara e
preparou-se para fazer fogo. Ante o espanto geral, o general encaminhou-se
calmamente para a zona dos alvos-silhueta, a cem metros de distância, e
postou-se junto de um deles. O comandante do batalhão, aflito, apressou-se a
acompanhá-lo, mas o general ordenou: Vá lá pró pé dos outros. O comandante,
um tenente-coronel, insistiu em ficar, mas Spínola não esteve pelos ajustes.
Vá lá para trás, já lhe disse. O comandante, que suava frio, retirou enfim.
Spínola junto dos alvos da carreira de tiro
O
general apontou com o pingalim para um dos alvos, a um escasso metro de distância dele,
e comandou: Estás a ver este? Atira para ele. O
comandante do batalhão, cada vez mais angustiado, torcia as mãos. O Americano,
de olhos esbugalhados, esperava a ordem para disparar. Spínola impacientou-se:
Então o que é que há?
O comandante ripostou: Estamos à espera de que o meu
general saia daí!
Spínola, furioso, voltou à carga: Não saio nada daqui. O
gajo que dispare. Se é bom atirador, não falha o alvo. Vamos lá, depressa.
Jimmy Hoagland, o jornalista, perguntava a Otelo: Mas o homem é doido ou quê?
Ele sabe que o “Americano” só tem 49 dias de instrução acelerada e nunca tinha
visto antes uma espingarda?
O
comandante do batalhão, sem outra saída, deu finalmente voz de fogo e fechou os
olhos. Spínola, ao lado do alvo, não se mexia. O Americano disparou uma,
duas, três… dez vezes.
Após cada um dos dez tiros, o general apontava o impacte
da bala com o pingalim e elogiava o atirador – que não falhou uma única vez.
Toda a gente soprou de alívio quando a série de disparos terminou e Spínola
chamou toda a gente para que se apreciassem os resultados. O Americano passara
no teste – e o general convencera-se de que também passara no teste do
jornalista norte-americano.
Piscando o olho a Otelo, revelou o que lhe ia na
alma: Então o que disse o jornalista disto? Ficou de boca aberta, não? Nunca
tinha visto uma coisa assim.
Otelo retorquiu: Ele já me deu a sua opinião.
- Ah!
Sim? E então?
- Diz que o meu general é doido. E Otelo rematou assim a narrativa: Spínola,
feliz, exultante, ria à gargalhada. Traduzi para Jimmy. Riu também.
Veja mais um episódio passado entre estas duas personagens -aqui
Saiba mais sobre o general António de Spínola - aqui
Saiba mais sobre o coronel Otelo Saraiva de Carvalho - aqui
As histórias que contavas lá da aldeiaa bola no telhado da vizinhao branco no amarelo da eirae a calça sem bainha
A varanda e a calça sem bainha
a semana na baía
a pesca à linha
a vizinha,
o que querias da montanha
Que pensamento querias da montanhafugiste um dia p'ra Kilimanjaroseria o jeito sábio dum cocoanaa falar sob um céu claroa marimba, a falar sob um céu claroa madeira, de pau preto um aparoa montanhavou de boleia em boleiaAgora vou de boleia em boleiaagora vou voltar a ser meninoparar, ouvir silêncios sobre a areiavisitar-te em S. FranciscoSobre a areia, visitar-te em S. Franciscolua cheiaa subir tudo o que lembroa gavinha, numa noite de DezembroDeixaste o sol na praia de Inhambaneno cais da ponte o dia do vaporamigos que p'ra longe a pátria banenum retrato de esplendorVentoinha, num retrato de esplendorcasuarina, quinino saga e calora cantinacom o sabore fico com o sabor das leituraspercorro a vossa esteira pelo marcom um baú de histórias de aventurasvou morrer em Zanzibar...
Embora aborde também a situação militar e política de Moçambique e da Guiné-Bissau
nos derradeiros anos do domínio colonial português (que teve os dias
contados após a revolução de 25 de Abril de 1974) e no período que
imediatamente se lhe seguiu, Jogos Africanos, a excelente obra de Jaime Nogueira Pinto (JNP) publicada em 2008 por A Esfera dos Livros, assenta sobretudo em dois
robustos pilares narrativos:
- a forte ligação do autor a Angola, “jóia da
Coroa” do império, que o levaria a participar, após a independência, como
conselheiro político da UNITA (de Jonas Savimbi), na guerra civil que opôs este
movimento ao MPLA (de Agostinho Neto e do sucessor deste, José Eduardo dos
Santos);
- e, ponto de partida para tudo o mais, o seu fascínio por África e pela
história colonial portuguesa.
Tropas portuguesas nas guerras de África.
A
ligação a África de JNP começou na infância, como aconteceu a tantas crianças
portuguesas da sua geração, e inaugurou-se com o acesso às histórias, reais ou
imaginárias, de militares intrépidos e de heróicos exploradores dos sertões.
Num
sótão convidativo da residência familiar, na cidade do Porto, descobriu o
pequeno JNP um mundo até então ignorado mas de que nunca mais se conseguiria
libertar. Nas suas próprias palavras:
Foi aí, entre uma série de itinerários
africanos de viajantes portugueses do século XIX, que nos apareceram o Capelo e
o Ivens sentados numa sanzala, de chapéu colonial, carabina, pistolão e bota
alta. (…) Do mesmo armário saiu-nos o Serpa Pinto em forma de foto-desenho, de
cabelo e barbas hirsutos, no seu “Como eu atravessei África” (…) E lá vinha
outra vez o explorador, agora sob a legenda “Serpa Pinto e os seus moleques de
confiança”, sentado, armado e ladeado por dois negros com bom aspecto, também
de carabinas.
Líderes angolanos em 1975: Da esq. para a dir. - Holden Roberto (FNLA),
Jonas Savimbi (UNITA) e Agostinho Neto (MPLA)
Contributo
poderoso para a construção mental e sentimental dessa África mitificada, em
grande parte apenas imaginária ou já extinta, foi a posterior leitura de “As
Minas de Salomão”, de Ridder Haggard, na versão de Eça de Queiroz.
Diz JNP:
Vivi a fundo, com o Eça, este mundo das raças negras guerreiras, dos regimentos
zulus ou impis, das danças rituais, das batalhas da colina e de Lu, onde as
armas de fogo dos europeus faziam a diferença. E vivi também a morte, sempre tão
presente nesta e noutras narrativas de África. A morte à espreita no campo
aberto da savana com o leão, nos rios, com o crocodilo, na selva, com as
cobras. Ou a que vem dos homens, das setas envenenadas, das emboscadas, dos
recontros.
Soldados da UNITA em marcha.
O
início da guerra em Angola, no ano sangrento de 1961, trouxe a JNP uma outra
África: a que, irresistivelmente impulsionada pelos “ventos da História”, caminhava
em passos por vezes lentos, mas seguros e imparáveis, para a libertação dos
jugos coloniais.
Daí até 1974/1975, os anos do fim colonial, foram 13 anos de
guerra implacável em três frentes de combate – na Guiné-Bissau, em Moçambique e
em Angola. Em nenhuma das três frentes os portugueses foram militarmente
derrotados – a sua capitulação definitiva foi política, depois da revolução
ocorrida em Portugal no ano de 1974.
Soldados cubanos em Angola. Ao fundo, o retrato de Agostinho Neto.
JNP
era, e continua a ser, um homem politicamente situado à direita. Mas pertence a
uma direita infelizmente hoje muito rara em Portugal: intelectualizada,
reflexiva e moderada, com a qual os adversários conseguem dialogar e
discutir sem se desembocar em vias de facto.
Em 1974, porém, o fascínio outrora nascido naquele sótão encantado estava longe da extinção em JNP:
Era a minha segunda
África (…) Era um mito, um valor e, como todos os mitos e todos os valores,
intocável e indiscutível (…) Defender o Império, o Portugal do Minho a Timor,
era para nós, à direita, o mesmo, mas ao contrário, do que era o abandono incondicional
do Ultramar para os anticolonialistas da esquerda.
Tropas sul-africanas em Angola.
Isto
explica, em grande parte, o que foi a insólita e anacrónica "carreira" de JNP no Exército português. Tendo-se oferecido como voluntário para Angola, quando nada o obrigaria a isso, acabou
embarcado para a colónia em Julho de 1974 - isto é, depois da revolução, quando
o movimento das gentes lusas era já, pelo menos em potencial, de refluxo, de
abandono, de liquidação definitiva do império.
A ideia de JNP, naquela altura
como sempre, era a de defender o que fosse possível defender para que a ex-“jóia
da Coroa” não acabasse em mãos erradas…
Daí as manobras conspiratórias, as
alianças fugazes de última hora, os enganos e desenganos – até ao desenlace lógico, o único possível, daquela aventura: a fuga rocambolesca de Angola, pelo sul desértico,
acompanhado pela sua esposa (Maria José Nogueira Pinto), acabando tudo em
periclitantes refúgios nos territórios sob controlo dos sul-africanos.
Visita à cidade da Jamba. Da esquerda para a direita: Maria José Nogueira Pinto
(esposa do autor), sua irmã Maria João Avillez, Jonas Savimbi, Ana Isabel Savimbi
e Jaime Nogueira Pinto (foto incluída no livro).
O
livro prossegue, ora em tom dramático, ora em pinceladas de irresistível humor,
pelo exílio do autor e da sua família – ele, como tantos outros, já não era bem-vindo
no Portugal democrático...
Depois foi a reaproximação a Angola através de uma longa
ligação à UNITA, como conselheiro político, numa guerra civil que se estenderia
por 26 anos (o dobro da duração da “guerra portuguesa” em África!) e que só
findaria com a morte em combate de Jonas Savimbi (22 de Fevereiro de 2002).
Pelo meio fica o relato das andanças de JNP por vários países e da sua
intervenção activa no processo político em curso, designadamente os seus
contactos com alguns dos principais intervenientes no conflito, incluindo o próprio
Savimbi, na mítica (ou mitificada) cidade da Jamba, capital da resistência da
UNITA no sudeste angolano.
Tropas da UNITA na Jamba. Ao fundo, a imagem de Jonas Savimbi.
O
livro de JNP é de muito proveitosa leitura e fornece um contributo indispensável
para a compreensão da guerra civil em Angola e das intervenções armadas
externas - e directas - no conflito: Cuba do lado do MPLA e África do Sul em
apoio da UNITA. E explica de forma clara a evolução político-militar, a nível
mundial e no contexto angolano, que levaria à saída dessas forças “exógenas” do
campo de luta angolano.
Complementado,
por exemplo, pela obra de Margaret Anstee, representante do Secretário-Geral da
ONU em Angola (Órfão da Guerra Fria), Jogos Africanos possibilita uma visão tanto
quanto possível equilibrada do que foram as eleições de 1992 (relativamente às
quais Savimbi sustentou até ao fim ter existido fraude) e do quase imediato massacre
em Luanda, pelas forças do MPLA, de importantes dirigentes e de milhares de
simpatizantes da UNITA.
Um dos encontros entre José Eduardo dos Santos (MPLA) e Jonas Savimbi (UNITA). Apesar da aparente afabilidade e dos sucessivos "acordos", a paz tinha-se tornado impossível entre estas duas personagens.
Dessas ocorrências trágicas em Luanda resultaram mais dez anos de guerra
civil. Ficou claro, depois delas - não obstante os esforços de vários homens e mulheres de boa vontade e da celebração de múltiplos “acordos”
MPLA/UNITA –, que o problema de Angola só seria resolúvel por uma de duas formas:
- ou através da secessão do território, com entrega de cada uma das parcelas
divididas aos partidos em conflito;
- ou com o aniquilamento de uma das forças
combatentes e a morte do seu chefe – como viria a suceder em 22 de Fevereiro de
2002.
Jogos Africanos, de Jaime Nogueira Pinto, torna isto tão cristalino como a água pura...
Vem sendo, desde há cerca de cinquenta anos, uma das composições mais famosas da música ligeira universal.
A mim, para além da lembrança do Brasil, transporta-me sempre para as terras natais de Angola - pela sonoridade, pelas imagens, pela vastíssima coincidência de evocações...
Não é para admirar, se atendermos à ligação histórica e geográfica destes dois mundos, que se fitam eternamente por sobre as águas do Atlântico. De um lado Luanda, do outro Recife; Benguela e Maceió; Namibe e Aracaju; Porto Amboim e Salvador; Sumbe e Ilhéus...
Em palco, dois gigantes da música brasileira, tão prematuramente desaparecidos:
Elis Regina (1945-1982) - voz, garra e sentimento, a Pimentinha de mestre Vinicius de Moraes...
Tom Jobim (1927-1994) - compositor, executante, cantor, um dos progenitores da bossa nova...
O Cangaço foi um fenómeno ocorrido no Nordeste brasileiro de meados do século XIX ao início do século XX. Tem as suas origens em questões sociais e fundiárias dessa região, caracterizando-se por acções violentas de grupos ou indivíduos isolados: assaltavam fazendas, sequestravam coronéis (grandes fazendeiros) e saqueavam comboios e armazéns.
Não tinham morada fixa: vagueavam pelo sertão, praticando tais crimes, fugindo e se escondendo.
Os cangaceiros conheciam muito bem o território nordestino e a caatinga (“mata branca”), sendo por isso difícil a sua captura.
Estavam sempre preparados para enfrentar todo o tipo de situação. Conheciam as plantas medicinais, as fontes de água, locais com alimento, rotas de fuga e lugares de difícil acesso.
O primeiro bando de cangaceiros de que se tem conhecimento foi o de Jesuíno Alves de Melo Calado, Jesuíno Brilhante, que actuou por volta de 1870.
E o último foi o de Corisco (Cristino Gomes da Silva Cleto) assassinado em 25 de Maio de 1940.
O cangaceiro mais famoso foi Virgulino Ferreira da Silva, o "Lampião", denominado “Senhor do Sertão" e também "Rei do Cangaço".
Actuou durante as décadas de 1920 e 1930 em praticamente todos os estados do Nordeste brasileiro.
Para as autoridades, Lampião simbolizava a brutalidade, o mal, uma verdadeira doença que precisava ser cortada.
Para uma parte da população do sertão ele encarnou valores como a bravura, o heroísmo e o senso da honra.
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Lampião (Virgulino Ferreira da Silva)
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Virgulino Ferreira da Silva nasceu no dia 7 de julho de 1897, na Fazenda Ingazeira, situada no município de Vila Bela (hoje, Serra Talhada), no sertão de Pernambuco.
Foi o segundo filho de José Ferreira da Silva e de Maria Selena da Purificação.
Naquela época, o sertão quase não possuía escolas e estradas, viajava-se a pé, a cavalo, em burro e em jumento.
Os denominados coronéis (os proprietários de terras) imperavam, sob o signo da prepotência, como os verdadeiros chefes políticos, sem nunca sofrer represálias, porque a força do Estado estava sempre do seu lado.
Eram eles que davam a palavra final, ou seja, elegiam, destituíam, perseguiam, condenavam, absolviam, torturavam e matavam.
Apesar de muito inteligente, Virgulino abandonou a escola para ajudar a família no plantio da roça e na criação de gado. Gostava muito de dançar e de tocar sanfona. Compunha versos e adorava um bom rifle (espingarda).
Sabia costurar muito bem, em pano e couro, e confeccionava as próprias roupas.
Ele tinha 19 anos quando entrou para o cangaço.
Dizem que tudo começou através de disputas com José Saturnino, membro da vizinha família Nogueira. Lutando contra essa família durante muitos anos, Virgulino e seus irmãos já se comportavam como futuros cangaceiros, não tardando a entrar em conflito com a polícia.
A decisão de viver e morrer como bandido, contudo, só foi tomada quando a polícia matou José Ferreira da Silva - o pai de Lampião - enquanto ele debulhava milho.
Naquele mesmo dia, os Ferreira fazem um juramento: o seu luto, até à morte, iria ser o rifle, a cartucheira e os tiroteios.
Quando sabia da existência de um coronel perverso, Lampião não perdia a oportunidade de queimar-lhe as fazendas e matar-lhe o gado.
Nas incursões em vilas e povoados, o grupo saqueava, dizimava e matava. As violências cometidas pelo bando eram inúmeras: tatuagem a fogo, corte de orelha ou de língua, castração, estupro, morte lenta, entre outras.
Muitos habitantes abandonavam definitivamente as suas propriedades, tornando desertas as caatingas, já que elas estavam entregues a soldados e cangaceiros.
Às vezes passavam-se meses sem se ouvir falar de Lampião, pensando-se, inclusive, que teria morrido. Mas, de repente, ele surgia do nada com o seu bando, como um tremendo furacão, lutando contra as volantes (destacamentos móveis da polícia), incendiando fazendas, roubando e matando com a maior naturalidade.
Em algumas ocasiões, seus gestos eram generosos: confraternizava com as pessoas, organizava festas, distribuía dinheiro, pagava bebida para todos.
Maria Déia (ou Maria Bonita, segundo Lampião)
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Em uma de suas paradas para descansar, perto da Cachoeira de Paulo Afonso, Lampião conheceu Maria Déia, filha de um fazendeiro de Jeremoabo, na Bahia.
Ela era casada havia cinco anos com José de Nenén - um comerciante da região - mas nutria uma paixão platónica por Lampião, mesmo sem nunca tê-lo encontrado.
O facto é que Virgulino caiu de amores ao vê-la. E, impressionado com a sua beleza, passou a chamá-la de Maria Bonita. Em vez de três dias, ficou dez na Fazenda Malhada da Caiçara.
Com a concordância dos pais, que apoiavam o desejo da filha, Maria Déia coloca as suas roupas em dois bornais, penteia os cabelos e parte com Lampião rumo à caatinga.
Era o ano de 1931 e ela tinha 20 anos. Ele, cerca de 34.
Há várias fotos disponíveis sobre a vida dos cangaceiros.
Uma das melhores é a de Maria Bonita (ver acima), cabelos arrumados, sentada num banco, de pernas cruzadas, chapéu sobre o joelho, mão direita sobre o chapéu, exibindo vários anéis, como a modelo moderna orgulhosa por envergar trajes de uma etiqueta de vanguarda.
É a sua foto mais famosa, aparecida à época na revista brasileira O Cruzeiro.
A pose de Maria Bonita sugere o papel das mulheres no cangaço.
Deve-se a elas o adoçamento dos costumes dos cangaceiros.
Nessa fase de quase sedentarismo do grupo, Lampião entrava nas cidades e dizia: “É Lampião que vem chegando, amando, gozando e querendo bem”.
Enunciava o oposto da fama terrorista do bando.
Talvez fosse esse o objectivo de Lampião ao admitir mulheres no grupo.
Segundo interpretações de especialistas, elas facilitavam a comunicação com a população e impunham alguns limites à violência do cangaço.
Diante das câmaras, dão o ar de normalidade, de “família”, à condição sublevada dos cangaceiros.
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O convívio dos cangaceiros de Lampião
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Em 1932, Lampião e Maria Bonita têm uma filha. Chamam-na de Expedita.
Maria Bonita deu à luz no meio da caatinga, à sombra de um umbuzeiro, em Porto de Folha, no estado de Sergipe.
Lampião serviu de parteiro.
Como se tratava de um período de intensas perseguições e confrontos, e a vida era bastante incerta, os pais não tinham condições de criar Expedita dentro do cangaço.
Os factos que ocorreram tornaram-se em assunto polémico. Uns diziam que Expedita tinha sido entregue ao tio João, irmão de Lampião, que nunca fez parte do cangaço; e outros testemunharam que a criança foi deixada na casa do vaqueiro Manuel Severo, na Fazenda Jaçoba.
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Tempos de paz e de lazer...
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O bando de Lampião resistiu durante quase 20 anos, lutando com grupos de civis que o perseguiam e com a polícia de 7 estados nordestinos.
Por todo esse tempo, assaltou propriedades de grandes fazendeiros, atacou povoados, vilas e cidades, roubou, pilhou, torturou e matou os seus adversários.
Apesar de ter sido baleado nove vezes, Lampião sobreviveu a todos os ferimentos, sem contar com qualquer tipo de assistência médica formal.
Para estancar o sangue e curar os ferimentos usavam-se mofo, pó de café e, até, excrementos de gado.
Eram usadas, ainda, ervas medicinais e rezas dos curandeiros, que nem sempre funcionavam como se esperava.
Extremamente habilidoso, dotado de grande capacidade de improvisação, era Lampião quem fazia os curativos, encanava pernas e braços quebrados dos feridos e fazia os partos das mulheres dos cangaceiros. Superdotado de inteligência, ele era médico, farmacêutico, dentista, vaqueiro, poeta, estratega, guerrilheiro, artesão.
Desconfiado, só ingeria algo depois que alguém tivesse provado o alimento.
Mas não conseguiu livrar-se da traição dos falsos amigos.
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Posando para a imprensa brasileira
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No dia 27 de Julho de 1938, conforme o costume de anos a fio, o bando acampou na fazenda Angicos, situada no sertão de Sergipe, esconderijo tido por Lampião como o de maior segurança.
Era noite, chovia muito e todos dormiam em suas barracas.
Na madrugada do dia 28, a polícia chegou tão de mansinho que nem os cães pressentiram.
Quando um dos cangaceiros deu o alarme, já era tarde de mais.
Não se sabe ao certo quem os traiu. O certo é que o bando foi apanhado totalmente desprevenido. Quando os policiais do Tenente João Bezerra e do Sargento Aniceto Rodrigues da Silva abriram fogo com metralhadoras portáteis, os cangaceiros não puderam empreender qualquer tentativa viável de defesa.
O ataque durou uns vinte minutos.
Dos 34 cangaceiros presentes, 11 morreram ali mesmo.
Lampião foi um dos primeiros a morrer.
Logo em seguida, Maria Bonita foi gravemente ferida.
Alguns cangaceiros, transtornados pela morte inesperada do seu líder, conseguiram escapar.
Eufóricos com a vitória, os policiais saquearam e mutilaram os mortos.
Roubaram todo o dinheiro, o ouro e as jóias.
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A ferro e fogo...
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A força volante, de maneira bastante desumana, decepou a cabeça de Lampião.
Maria Bonita ainda estava viva, apesar de bastante ferida, quando sua cabeça foi separada do corpo.
O mesmo ocorreu com Quinta-Feira e Mergulhão: tiveram suas cabeças arrancadas em vida.
Feito isso, os vencedores salgaram os seus macabros troféus e colocaram-nos em latas de querosene, contendo aguardente e cal.
Os corpos mutilados e ensanguentados foram deixados a céu aberto para servirem de alimento aos urubus.
Percorrendo os estados nordestinos, João Bezerra exibia as cabeças - já em adiantado estado de decomposição - por onde passava, atraindo uma multidão de pessoas.
Primeiro, os troféus estiveram em Maceió e, depois, foram até ao sul do Brasil.
As cabeças seguiram depois para Salvador, onde permaneceram por seis anos na Faculdade de Odontologia da Universidade Federal da Bahia.
Posteriormente, e por mais de três décadas, os restos mortais ficaram expostos no Museu Nina Rodrigues, em Salvador.
Durante muito tempo, as famílias de Lampião, Corisco e Maria Bonita lutaram para dar um enterro digno aos seus parentes.
O economista Silvio Bulhões, filho de Corisco e Dadá (membros do bando), empreendeu muitos esforços para dar sepultamento aos restos mortais dos cangaceiros e parar, de uma vez por todas, essa macabra exibição pública.
A revista O Cruzeiro chegou a publicar (em 6 de Junho de 1959) uma reportagem sobre o caso ("Justiça para Lampião", com texto e fotos de João Martins). Aqui se dava conta do chocante desrespeito e desumanidade que envolvia a exibição dos restos mortais dos cangaceiros, como se estes não passassem de meros troféus ou de chamativas curiosidades para turistas.
Outros órgãos da imprensa brasileira fizeram campanha nesse sentido.
Apesar disso, o enterro dos restos mortais dos cangaceiros só ocorreria em 1969: as cabeças de Lampião e de Maria Bonita, exibidas durante mais de trinta anos, foram sepultadas no dia 6 de Fevereiro desse ano.
Os demais cangaceiros tiveram o seu enterro uma semana depois.
Lampião e Maria Bonita possuem parentes próximos em Aracaju: sua filha, Expedita, casou com Manuel Messias Neto e teve quatro filhos (Djair, Gleuza, Isa Cristina e Vera Lúcia).
Deve salientar-se a grande inteligência de Virgulino Ferreira da Silva (Lampião), bem como o seu valor como estratega. Só isso explica uma tão longa sobrevivência.
Mais de setenta anos após a sua morte, ele continua sendo lembrado na música, na moda, na literatura de cordel, no teatro, no cinema, em escolas, em museus, em conferências e debates.
O temido cangaceiro, indubitavelmente, o mais importante e carismático de todos, deixou gravado nas caatingas sertanejas um pedaço da história do Nordeste.
E assim se transformou num autêntico mito brasileiro.
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Memórias de Lampião, de Maria Bonita e dos Cangaceiros
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1 - "Mulher Rendeira" é um antigo tema musical, muito popular nos sertões nordestinos ao tempo do Rei do Cangaço.
A tradição atribui esta composição ao próprio Lampião, que a entoaria com os seus companheiros ao entrar nos povoados.
Uma das versões - verdadeiro documento histórico - inclui, ao princípio, a voz de um dos sobreviventes do bando (António dos Santos, mais conhecido por Volta Seca, o mais jovem dos cangaceiros de Lampião):
..." Olê muié rendêra
... Olê muié rendá...
... Tu m'ensina a fazê renda...
... Eu t'ensino a namorá...
... O fuzil de Lampião, tem cinco laços de fita
... O lugar que ele habita, não falta moça bonita…"
Oiça aqui:
2 - Pode ver abaixo uma curta reportagem sobre a Exposição do Cangaço em São Paulo.
Contém pequenos filmes sobre os cangaceiros (incluindo Lampião e Maria Bonita).
Veja e oiça também Expedita e Vera (filha e neta deste famoso e trágico casal).
Aqui:
3 - Por fim, uma evocação de Lampião pelo grande Luiz Gonzaga (Lampião Falou):
.Fontes:
-Semira Adler Vainsencher (investigadora da Fundação Joaquim Nabuco, Brasil);