sábado, 3 de abril de 2021

Recordando tempos de D. João VI, rei de Portugal e do Brasil (2)


Episódios de pequena história (Piolhos atlânticos, moda europeia no Rio de Janeiro, humor carioca e um fino comentário do monarca acerca dos "castrati"...)



A viagem da família real portuguesa para o Brasil (1807/1808 - aqui), em navios escoltados pela Marinha de Guerra britânica, foi demorada, perigosa e acidentada. Os milhares de fugitivos tiveram de enfrentar tempestades medonhas, nevoeiros cerradíssimos, dispersão de navios, calmarias prolongadas, escassez de géneros alimentícios e incomodidade dos alojamentos (grande parte deles viajava e dormia ao relento, sem quaisquer agasalhos, nos tombadilhos das embarcações).

A certa altura sobreveio uma terrível infestação de piolhos, certamente provocada pelas precárias condições de higiene reinantes. As mulheres, nobres ou plebeias, foram as maiores vítimas devido às fartas cabeleiras.

Em tal emergência não houve outro remédio senão recorrer a meios radicais: as perucas foram atiradas borda fora e as senhoras submeteram-se tristemente à tosquia geral, com os belos cabelos naturais suprimidos sob impiedosas tesouradas.


Rio de Janeiro - Rua Direita (depois Rua 1.º de Março)


A 7 de Março de 1808, quando enfim chegaram ao Rio de Janeiro, nenhuma das damas quis aparecer à multidão que as aguardava com as cabeças naquele estado miserável, pelo que solucionaram o problema ocultando as carecas com vistosos turbantes improvisados.

O expediente provocou uma reacção inesperada da parte das mulheres do Rio. Confrontadas pela primeira vez com a presença das maiores nobrezas de Portugal, elas supuseram que o uso de turbantes constituísse o último grito da moda feminina europeia.

Assim, não tardaram a deitar abaixo as longas cabeleiras e a enfeitarem-se com turbantes tanto quanto possível imitativos dos que tinham apreciado nas mulheres da corte portuguesa...


Largo do Carmo, no Rio de Janeiro, pouco depois da chegada de D. João VI

A chegada da corte colocou sérios problemas à administração da cidade, a começar pela necessidade de garantir alojamento a milhares de nobres e funcionários régios. As autoridades deitaram então mão a um recurso de ressonâncias medievais - o direito de "aposentadoria" da gente fidalga.

Desse modo, foram requisitadas para ocupação imediata dos recém-chegados as melhores habitações da cidade. Embora muitos dos beneficiários tivessem aceitado pagar rendas aos proprietários desapossados, houve bastantes que não o fizeram, usufruindo dos bens dos outros (e até dos seus serviçais) sem pagar coisa alguma.

Quando determinada residência caía na rede das aposentadorias, os funcionários régios afixavam à entrada o sinal de que a mesma tinha sido requisitada: PR.

A sigla queria dizer que aquele procedimento era sustentado pela autoridade do Príncipe Regente (D. João). Porém, o humor (negro?) dos cariocas logo descortinou outro significado da veneranda expressão. Para eles, PR passou a querer dizer, pura e simplesmente, Põe-te na Rua...




D. João VI, apesar do modo de ser retraído, era grande apreciador de manifestações artísticas (o Rio de Janeiro muito viria a beneficiar com isso).

Quanto à música, começou por deliciar-se com as obras sacras nos ambientes sombrios das igrejas, rodeado de frades reverentes e nada incomodativos. Tanto foi assim, que um pasquim de Lisboa, maldoso, dizia dele:

Nós  temos um rei chamado João:
faz o que lhe mandam,
come o que lhe dão.
E vai a Mafra rezar o cantochão.

Mas D. João era igualmente frequentador assíduo de teatros e óperas, e, neste particular, não enjeitava assistir às espantosas actuações dos "castrados" (castrati - rever aqui). Aliás, continuaria a contar com eles, após a fuga para o Brasil, nas exibições musicais da Capela Real do Rio de Janeiro.
 
Numa ocasião, ainda em Lisboa, D. João deslocou-se a S. Carlos para ouvir um castrato famoso, Domingos Caporalini, importado de Itália.

Nessa noite, Caporalini cantava La Molinara, de Giovanni Paisiello. E de tal forma brilhou numa das árias do 2.º acto que um cortesão, postado perto de D. João, não conteve o entusiasmo e exclamou:
Quanto não daria eu para cantar como este homem!

O soberano ouviu, olhou para ele e limitou-se a um comentário definitivo:
- Pois eu não daria nem metade do que ele teve de dar...

La Molinara
(Giovanni Paisiello)
2.º acto
A che far le superbette


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