sábado, 14 de novembro de 2020

A última carta de Maria Antonieta, rainha da França, escrita na prisão (1793) - 2.ª e Última Parte

(Conclusão da postagem de ontem - aqui)

Maria Antonieta na prisão da Conciergerie, aos 37 anos.
Abatida, cabelos embranquecidos, prematuramente envelhecida.


Transcrição da última carta de Maria Antonieta, rainha de França.
Escrita na prisão da Conciergerie, em Paris, na madrugada de 16 de Outubro de 1793, horas antes de ser guilhotinada. Dirigida à sua cunhada Isabel, irmã do rei Luís XVI (executado nove meses antes).

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"É a ti, minha querida irmã, que escrevo pela última vez.
Acabo de ser condenada, não a uma morte vergonhosa, que só o é para os criminosos, mas para me ir juntar a teu irmão.
Inocente como ele, espero mostrar a mesma firmeza que ele mostrou nos seus últimos momentos. Estou tranquila, como se está quando a consciência de nada nos acusa.
Tenho profunda mágoa de abandonar os meus pobres filhos; sabes que eu só vivia para eles e para ti, minha boa e terna irmã! Em que situação te deixo, a ti, que, por amizade, tudo sacrificaste para estar connosco!


Maria Teresa, filha de Maria Antonieta e de Luís XVI
(1778-1851)


Soube, durante o processo, que a minha filha está separada de ti. Coitada! Não ouso escrever à pobre criança; ela não receberia a minha carta; não sei mesmo se esta chegará às tuas mãos. Recebe a minha bênção para eles ambos; espero que um dia, quando forem mais velhos, possam juntar-se contigo e beneficiar dos teus ternos cuidados.
Que eles pensem no que eu nunca cessei de lhes inspirar: que os princípios e o cumprimento exacto dos seus deveres são a primeira base da vida, que a sua amizade e confiança mútua farão a sua felicidade.


Luís Carlos (ou Luís XVII) o outro filho dos reis de França (1785-1795)
Foi delfim de França a partir de 1789, ano em que faleceu Luís José, seu irmão e primeiro delfim.
Luís Carlos morreu na prisão, com dez anos de idade.
Manipulado pelas autoridades revolucionárias, foi levado a prestar declarações difamatórias contra elementos da família, incluindo a própria mãe. É a isso que Maria Antonieta se refere na carta que dirigiu à cunhada.


Que a minha filha sinta que, pela idade que tem, deve auxiliar sempre o seu irmão com os conselhos que possam dar-lhe a experiência que tiver mais do que ele; que meu filho, por seu lado, preste a sua irmã todos os cuidados e atenções que a amizade pode inspirar; enfim, que sintam ambos que, em qualquer situação em que se encontrem, não serão verdadeiramente felizes senão pela união: que sigam o nosso exemplo.
Quantas consolações a nossa amizade nos deu na nossa desgraça! E a felicidade goza-se duplamente quando se pode partilhar com uma pessoa amiga; e onde encontrar amigo mais terno, mais íntimo, do que na própria família?
Que meu filho nunca esqueça as últimas palavras de seu pai, que lhe repito propositadamente: Nunca procure vingar a nossa morte!

Maria Antonieta aos 14 anos
(idade com que casou com o futuro rei de França, Luís XVI)

Tenho de falar-te de uma coisa bem triste para o meu coração. Calculo quanta mágoa te deve ter causado essa criança. Perdoa-lhe, minha querida irmã; pensa na sua idade e em como é fácil fazer dizer a uma criança o que se quer, e até o que ela não compreende. Tenho esperança em que há-de vir um dia em que avaliará melhor a tua bondade e a tua ternura por ambos.

Maria Antonieta nos tempos áureos.
Está acompanhada por três dos seus quatro filhos (Maria Teresa, Luís Carlos e Luís José). Falta apenas Sofia, que faleceu com 11 meses de idade.


Resta-me ainda confiar-te os meus últimos pensamentos. Teria querido escrevê-los desde o começo do processo, mas, além de não me deixarem escrever, as coisas foram tão rápidas que não haveria tempo para isso.
Morro na religião católica, apostólica e romana, que foi a de meus pais, em que fui criada e que professei sempre. Não penso vir a ter qualquer consolação espiritual, porque não sei se há ainda aqui alguns padres dessa religião. E mesmo o lugar em que estou expô-los-ia muito se aqui entrassem alguma vez.


Maria Antonieta, com as mãos amarradas atrás das costas, foi conduzida pelas ruas de Paris até ao cadafalso. A seu lado, o padre Girard, cujo estatuto religioso ela não reconheceu por ele ter prestado juramento à República.

Peço sinceramente perdão a Deus de todas as faltas que cometi desde que existo; espero que, na Sua bondade, Ele se dignará receber os meus últimos votos, assim como os que faço há muito tempo, para que Ele queira receber a minha alma na Sua misericórdia e bondade.
Peço perdão a todos os que conheço e particularmente a ti, minha irmã, de todas as mágoas que, sem querer, te tenha podido causar. Perdoo a todos os meus inimigos o mal que me têm feito. Digo aqui adeus a minhas tias e a todos os meus irmãos e irmãs.
Eu tinha amigos. A ideia de ser separada deles para sempre e a consciência da sua dor são um dos maiores desgostos que levo ao morrer; e que eles saibam, ao menos, que pensei neles até ao último momento.


A rainha no cadafalso.

Adeus, minha boa e terna irmã; possa esta carta chegar-te às mãos! Pensa sempre em mim; abraço-te de todo o coração, bem como aos meus pobres e queridos filhos. Meu Deus, como é terrível deixá-los para sempre!
Adeus, adeus; vou agora ocupar-me só dos meus deveres espirituais. Como não sou livre nos meus actos, talvez me tragam um padre; mas protesto aqui que não lhe direi uma palavra, e que o tratarei como uma pessoa absolutamente estranha".


A execução da rainha de França

Nota final


Esta derradeira carta de Maria Antonieta faz sobressair um perfil bastante diverso daquele que lhe foi sendo criado pela propaganda revolucionária e por alguns elementos da sua própria família (do lado francês), atribuindo-lhe comportamentos que nunca teve e frases que jamais disse. E demonstra a força inesperada de um carácter que, na sua miséria e por entre humilhações cruéis, ela tudo fez para manter nas últimas horas que viveu.

Fustigada por emoções brutais que, alterando-lhe o processo fisiológico normal, lhe provocaram grandes perdas de sangue durante a madrugada, ela achava-se em grave estado de fraqueza quando amanheceu. Não obstante, ingeriu apenas uma pequena porção do caldo que lhe foi levado pela criada do carcereiro. Foi também esta criada que, colocando-se à sua frente, permitiu que ela se lavasse e vestisse com algum decoro, protegida da curiosidade morbidamente ofensiva dos guardas ali presentes.

Estando carregada de luto pela morte do seu marido, executado havia nove meses, proibiram-na de que assim continuasse, pois isso poderia "irritar o povo". Ela envergou então o vestido branco com que enfrentaria a morte. Mandaram-lhe depois um padre, Girard, o qual, para se salvar dos furores revolucionários, tinha oportunamente jurado fidelidade à República: por isso, Maria Antonieta não só recusou confessar-se-lhe como dispensou todo o conforto espiritual que ele pretendesse oferecer-lhe. Quando Girard lhe perguntou se ao menos o deixava acompanhá-la até ao cadafalso, ela retorquiu-lhe que fizesse como entendesse. E ele optou por seguir com ela.

Às onze horas da manhã vieram buscá-la à prisão. De mãos atadas atrás das costas, fizeram-na subir para uma carreta puxada por um cavalo, sentando-a numa tábua apoiada nos varais. A seu lado, cabisbaixo e taciturno, Girard. Ao longo do percurso, a multidão expectante. Para muitos, ela continuava a ser a odiada "austríaca" e manifestavam-no com impropérios. Mas em nenhum momento deu sinal de fraqueza. O historiador Stefan Zweig foi porventura quem melhor descreveu a rainha nesta curta mas dramática viagem:

"O rosto pálido e calmo de Maria Antonieta não revela o menor medo ou sofrimento perante os curiosos que se alinham, apertando-se à sua passagem. Concentra toda a sua força de alma para ter coragem até ao fim, e é em vão que os seus mais encarniçados inimigos a espiam para lhe surpreender um momento de fraqueza ou desânimo (...) O seu rosto é de bronze: parece que nada ouve, que nada vê. As mãos atadas atrás das costas fazem com que levante a nuca um pouco mais. As pupilas olham a direito, em frente, e nenhuma das imagens vivas da rua penetram nos seus olhos, que a morte interiormente já possui. Nenhum tremor lhe agita os lábios, nenhum estremecimento lhe percorre o corpo; vai ali, na carreta, altiva e desdenhosa, perfeitamente senhora de si (...)."

À chegada, foi com a mesma fria dignidade e infinita coragem que a rainha enfrentou o vulto sinistro do cadafalso. Sem aceitar o auxílio de ninguém, subiu rapidamente os degraus como se tivesse pressa de deixar o mundo. Deixou-se conduzir e preparar pelos carrascos quase com indiferença. Quando a lâmina fatal finalmente desceu sobre ela, escutou-se na praça um rugido selvagem: Viva a República!

A corajosa conduta de Maria Antonieta, sem qualquer vestígio de tibieza ou terror, exasperou os seus maiores inimigos. Um deles, o odioso Jacques Hébert, dedicou-lhe no dia seguinte um artigo no jornal revolucionário Père Duchesne: apelidou-a de "desavergonhada" e deu livre curso à frustração que sentia: "ainda por cima foi audaciosa e insolente até ao fim!"

Ironia dos meandros revolucionários: sem que o furioso Hébert pudesse suspeitar disso, ele próprio percorreria, dentro de cinco meses, o mesmo percurso de Maria Antonieta, para também ele se encontrar com a terrível guilhotina. Destino idêntico estaria reservado, num curto espaço de tempo, aos que, de uma forma ou de outra, mais haviam contribuído para a condenação da rainha de França: Madame Roland, Robespierre, Danton, Fouquier-Tinville...

Túmulos e memorial de Luís XVI e de Maria Antonieta.
Basílica de Saint-Denis, Paris, França.


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