quinta-feira, 9 de julho de 2020

Ode ao Gato (Pablo Neruda)




Os animais nasceram imperfeitos,
compridos de rabo,
tristes de cabeça.

Pouco a pouco se foram compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas,
graça
voo.

O gato,
só o gato
apareceu completo e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho
e sabe o que quer.

O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,

mas o gato
quer ser só gato
e todo o gato é gato
do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite até aos seus olhos de ouro.

Não há unidade como ele,

não têm nem a lua nem a flor tal contextura:
é uma coisa só,
como o sol ou o topázio,

e a elástica linha
em seu contorno firme e subtil
é como a linha da proa de uma nave.

Os seus olhos amarelos
deixaram uma só ranhura
para jogar as moedas da noite.

Oh pequeno imperador sem orbe,

conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão,
nupcial sultão do céu
das telhas eróticas,

o vento do amor na intempérie reclamas,
quando passas e pousas
quatro pés delicados no solo,

cheirando,
desconfiando de todo o terrestre,
porque tudo é imundo
para o imaculado pé do gato.

Oh fera independente da casa,

arrogante vestígio da noite,
preguiçoso,
ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,

polícia secreta dos quartos,
insígnia de um desaparecido veludo,
certamente não há enigma na tua maneira,

talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti
e pertences ao habitante menos misterioso

talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários,
tios do gato,
companheiros,
colegas,
discípulos
ou amigos do seu gato.

Eu não.

Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.

Tudo sei,
a vida e o seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica e o gineceu
com os seus extravios,

o mais e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,

mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro.



Autor: Pablo Neruda - Chile (1904-1973)


(Nas imagens: Rex, um aristogato autêntico)

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