quarta-feira, 8 de julho de 2020

Aberturas de Grandes Livros - "O Coronel e o Lobisomem" (José Cândido de Carvalho - Brasil)

Capa de uma das edições portuguesas da obra
(Livros do Brasil)


“A bem dizer, sou Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, do que tenho honra e faço alarde.

Herdei do meu avô Simeão terras de muitas medidas, gado do mais gordo, pasto do mais fino.

Leio no corrente da vista e até uns latins arranhei em tempos verdes da infância, com uns padres-mestres a dez tostões por mês.

Digo, modéstia de lado, que já discuti e joguei no assoalho do Foro mais de um doutor formado.
Mas disso não faço glória, pois sou sujeito lavado de vaidade, mimoso no trato, de palavra educada.




Já morreu o antigamente em que Ponciano mandava saber nos ermos se havia um caso de lobisomem a sanar ou pronta justiça a ministrar.

Só de uma regalia não abri mão nesses anos todos de pasto e vento: a de falar alto, sem freio nos dentes, sem medir consideração, seja em compartimento do governo, seja em sala de desembargador.

Trato as partes no macio, em jeito de moça. Se não recebo cortesia de igual porte, abro o peito:
- Seu filho de égua, quem pensa que é?





Nos currais do Sobradinho, no debaixo do capotão de meu avô, passei os anos de pequenice, que pai e mãe perdi no gosto do primeiro leite.

Como fosse dado a fazer garatujações e desabusado de boca, lá num Inverno dos antigos, Simeão coçou a cabeça e estipulou que o neto devia ser doutor de lei:
- Esse menino tem todo o sintoma do povo da política. É invencioneiro e linguarudo.

Então, para aprimorar tais inclinações de nascença, caí nas garras da prima Sinhá Azeredo, parenta encalhada na prateleira, uma vez que casamento não achou por ser magricela e devota.

Morava em nação de chuva – um oco de coruja chamado Sossego, onde só dava presença bicho penado.
De noite, era aquela algazarra de lobisomem, pio de coruja, asa de caburé, fora outros atrasos dos ermos.




Metida nos livros de devoção, Sinhá Azeredo não tinha outra aptidão do que ensinar ao parente sabedoria ligada aos anjos do céu.


Saía da prima um cheiro de vela, um bafo de coisa de oratório. De tardinha, sumia no quarto das devoções, enquanto eu ficava na soletração da cartilha.

Sinhá conhecia toda a raça de ventos e para cortar as maldades e miasmas deles possuía reza da maior força.

Por mal dos meus pecados, o que a prima mais apreciava era conversa de assombração, de meninos desbaptizados que morriam sem o benefício da água benta ou de herege esquentado em fogueira de frade.
Lambia os beiços de cera e ameaçava:
- Criança sem religião acaba no fogo dos hereges. (...)"

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Saiba mais sobre esta obra (aqui) e o seu autor, José Cândido de Carvalho, um brasileiro "filho de lavradores portugueses" (aqui).
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(Asa Branca):

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