sábado, 13 de junho de 2020

NELLIE BLY - Uma pioneira do jornalismo que mergulhou voluntariamente nos abismos da loucura...

Nellie Bly (1864-1922)

Nellie  Bly foi o pseudónimo utilizado na sua vida profissional por Elizabeth Cochrane Seaman, jornalista e escritora norte-americana. Nasceu na Pensilvânia a 5 de Maio de 1864 e faleceu em New York, de pneumonia, em 27 de Janeiro de 1922.
Pela vontade e capacidade de lutar corajosamente contra preconceitos e convenções sociais, o seu percurso de vida faz lembrar o de outras mulheres suas contemporâneas (como a aviadora Amelia Earhart, por exemplo - rever aqui).

Nellie Bly foi uma célebre pioneira do jornalismo de investigação, numa época em que as suas colegas de profissão se dedicavam quase exclusivamente a assuntos considerados mais adequados à condição feminina, como a moda, a jardinagem ou os eventos sociais mais frívolos.

Nos seus primeiros tempos, escrevendo para o jornal Pittsburgh Dispatch, ela própria se viu pressionada para abordar tais matérias. Mas depressa se "rebelou". Meteu-se em várias investigações sobre as condições de trabalho das mulheres empregadas em fábricas e, logo a seguir, com apenas 21 anos, partiu para o México e tornou-se correspondente internacional.

No México, onde passou cerca de meio ano, escreveu textos sobre a vida e a cultura do povo. Mas, nalguns desses textos - mais tarde reunidos no livro Six Months in Mexico -, não tardou a "dar o salto": criticou asperamente a ditadura de Porfirio Díaz, a censura de notícias e a prisão de jornalistas locais.

Ameaçada de prisão pelas autoridades mexicanas, acabou por ser expulsa e  regressou aos Estados Unidos. Mas do seu trabalho já não podia ser expurgado o perfil de Porfirio Díaz que ela fixara para o grande público: o de um tirano implacável que oprimia o seu próprio povo.

Capa do livro
"Volta ao Mundo com Nellie Bly"


Nos dias de hoje, quando se fala de Nellie Bly, é comum citar-se, antes de mais nada, a sua famosa viagem de circum-navegação do mundo.

A épica aventura nasceu de uma ideia que ela expusera ao editor de um outro jornal (o New York World): a jovem (contava só 25 anos) pretendia "apenas" recriar, pessoalmente, a viagem fictícia de Phileas Fogg imaginada por Júlio Verne na sua obra A Volta ao Mundo em Oitenta Dias.

E foi assim que, a 14 de Novembro de 1889, Nellie Bly subiu a bordo do Augusta Victoria para cumprir uns arriscados e aventurosos 40 000 quilómetros de viagem. Levava consigo somente meia dúzia de peças de roupa, artigos de higiene, 200 libras, um punhado de dólares e um pouco de ouro.

Servindo-se de vários meios de transporte, especialmente comboios e navios a vapor, passou por Inglaterra, França (onde conheceu Júlio Verne, o seu inspirador), Itália, Canal de Suez, Ceilão, Malásia, Singapura, Hong Kong e Japão.

Nalgumas etapas, o péssimo estado das vias de comunicação fê-la perder tempo. Mas aproveitou para algumas visitas que não constavam do programa inicial, como a que efectuou a uma colónia chinesa de leprosos.
Recorrendo ao telégrafo, a jornalista ia mantendo os seus leitores a par das peripécias da viagem. Mais tarde, esses relatos seriam recolhidos no livro Volta ao Mundo com Nellie Bly.

Nellie chegou a New Jersey, de onde havia partido, no dia 25 de Janeiro de 1890, gastando 72 dias na memorável viagem e batendo, por cerca de oito dias, o frio, cerebral e excêntrico Phileas Fogg de Júlio Verne.
Com a irrebatível vantagem de ter realizado um projecto "de verdade", ao contrário daquele seu fictício competidor…

Recepção de Nellie Bly em Jersey City,
após o regresso da sua volta ao mundo em 72 dias

No entanto, se a "volta ao mundo" acabou por ficar como coroa de glória da sua carreira jornalística, não menos retumbante foi uma outra proeza de Nellie Bly acontecida poucos anos antes.

Tendo abandonado o Pittsburgh Dispatch em 1887, mudou-se para New York e propôs a Joseph Pulitzer, editor do New York World, a realização de um trabalho como "jornalista disfarçada": nada mais nada menos do que fingir-se louca para investigar as denúncias de maus tratos e brutalidade que estariam a ocorrer no hospital psiquiátrico para mulheres da Ilha Blackwell (actual Ilha Roosevelt, no condado de New York).

Aprovado o projecto, Nellie treinou arduamente, diante do espelho, as expressões e trejeitos que considerou ajustados à sua nova condição de pessoa "sem juízo".
Na pensão onde se hospedou, refinou o comportamento de "louca" - até que os donos do estabelecimento concluíram naturalmente o que ela desejava: se parecia louca, deveria estar mesmo louca.

Convocadas as autoridades competentes, a jornalista passou por uma fila de especialistas que, ante o seu comportamento e a completa ausência de memória que aparentava, logo decidiram que ela sofria, de facto, de grave insanidade mental e que, portanto, deveria ser internada.
E foi desse modo que a destemida Nellie Bly acabou por dar entrada no nefando hospício da Ilha Blackwell.

Capa do livro "Dez Dias Num Hospício"


Sem qualquer auxílio do exterior, Nellie experimentou os "tratamentos" habituais daquela instituição e não tardou a sentir-se às portas do inferno.
A experiência da repórter - publicada no jornal e mais tarde narrada no livro Dez Dias Num Hospício - foi tão violenta e traumatizante que ela parece ter passado a sofrer realmente, a espaços, das falhas de memória que faziam parte do seu disfarce.

O quadro que ela daria a conhecer ao mundo revelou-se chocantemente dantesco. As pacientes eram por norma forçadas a ficar o dia inteiro sentadas, imóveis, em duros bancos de madeira. Tinham o calçado apertado por dispositivos especiais que infligiam dores atrozes e supostamente desencorajavam eventuais ideias de fuga. Não dispunham de nenhuma protecção contra o frio enregelante que se fazia sentir. As mais "irrequietas" eram amarradas com cordas e ligadas umas às outras.

As refeições consistiam numa repulsiva mistura de arroz, carne putrefacta, pão seco e água imprópria para consumo. Pela cozinha e pelo refeitório escorria um esgoto nauseabundo, enquanto os ratos perambulavam livremente pelos corredores e salas do edifício.

As enfermeiras impunham ordem e silêncio. Caso as visadas não se calassem, agrediam-nas brutalmente. Nos banhos, água gelada era atirada sobre a cabeça das vítimas com baldes.  Um dos castigos consistia na imersão da vítima num tanque de água gelada, o que  a levava invariavelmente à beira do afogamento.

O sinistro hospício para mulheres, na Ilha Blackwell, onde Nellie Bly viveu dez dias de terror.

Nellie Bly conseguiu chegar à fala com algumas pacientes e concluiu que muitas delas não eram, de facto, insanas ou loucas: tinham sido internadas contra vontade, por motivos fúteis ou por mera incompetência dos responsáveis.

Daí partiu para uma das suas mais importantes conclusões: a de que, por mais saudável que fosse uma mulher, bastariam poucos meses daqueles "tratamentos" para que ela se tornasse doida de verdade.

Como ela escreveria:

O que poderia gerar mais rapidamente a insanidade do que um tratamento destes? Se fosse possível, gostaria que os médicos especialistas que me internaram e que assim demonstraram as suas competências, pegassem em mulheres perfeitamente saudáveis e sãs e as fizessem sentar em bancos duros das seis da manhã às oito da noite, sem as deixar mover ou falar durante esse tempo, sem lhes darem nada para ler ou qualquer conhecimento sobre o mundo lá fora, fornecendo-lhes comida de péssima qualidade e um tratamento brutal. Verificariam quanto tempo seria preciso para que elas se tornassem loucas. Dois meses chegariam para as destruir mental e fisicamente.

Ao fim de dez dias de internamento, e por entre alguns episódios rocambolescos, Nellie Bly colocou termo ao seu disfarce e escapuliu-se daquela câmara de tortura. A sua reportagem causou sensação entre o público e lançou-a definitivamente para o "estrelato" jornalístico. E ainda não tinha realizado a famosa "volta ao mundo", que em breve se seguiria...

As autoridades lançaram uma investigação sobre as condições no hospício, solicitando a colaboração da jornalista. Os responsáveis foram punidos e, no seu relatório, os investigadores recomendaram mudanças profundas no tratamento a dispensar àquele tipo de pacientes. Os orçamentos para esse efeito foram reforçados. Tão ou mais importante do que isso, foi exigido que apenas pessoas severamente doentes pudessem ser internadas em hospitais.

A experiência de Nellie Bly na Ilha Blackwell inspirou, em 2019, o filme Fuga do Manicómio - A História de Nellie Bly, realizado por Karen Moncrieff.

Os papéis principais foram confiados a Christina Ricci (Nellie Bly) e a Judith Light (Matron Grady, uma espécie de governanta ou chefe do pessoal do hospício).
Ambas conseguiram extraordinários desempenhos.


Trailer de Fuga do Manicómio:




Uma das cenas mais impressionantes do filme.
Nellie Bly (Christina Ricci) é a de cabelo mais escuro, à direita.


Nellie Bly nos seus últimos anos



Túmulo de Nellie Bly no Woodlawn Cemetery (Bronx - New York)

Canção "Nellie Bly":


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